23 fevereiro 2006

A Lenda de Gaia


Foto: bao666

...e igualmente lenda da origem do nome do Rio Âncora, que desagua no Atlântico entre Caminha e Viana do Castelo. Segundo a lenda, teria sido em frente à embocadura do rio que a rainha ficou "ancorada" com uma mó atada ao pescoço.

A fotografia acima mostrada, que parece ter sido tirada do Muro dos Bacalhoeiros, na Ribeira portuense, mostra o local onde teriam ocorrido os supostos acontecimentos narrados pela lenda: o morro do Castelo, em Gaia.

Como se vê, praticamente nada resta do castelo propriamente dito. O local, no entanto, continua a ser chamado Castelo e a rua que serpenteia pelo morro acima, a partir da beira-rio, tem o nome do Rei Ramiro, de Leão (o reino de Portugal só viria a surgir dois a três séculos mais tarde), que é o principal protagonista da lenda.

O desprezo a que o morro do Castelo se encontra votado é verdadeiramente confrangedor. Em qualquer cidade, um miradouro como este seria arranjado com todo o cuidado e estaria sempre cheio de visitantes, que não se cansariam de fotografar a estupenda vista que dele se tem. Mas em Gaia, não. Apesar dos inúmeros turistas que enxameiam a Ribeira de Gaia e que visitam as muitas caves de vinho do Porto que a cidade tem (incluindo as caves do Porto Fonseca que são visíveis na foto), ninguém os leva ao morro do Castelo, ninguém vai lá acima respirar a brisa fresca que sopra lá no alto, ninguém estende a vista pelo lindíssimo panorama que de lá de cima se pode disfrutar. Como é possível?!

A lenda de Gaia é um texto medieval que pertence ao segundo dos quatro Livros de Linhagens, os quais descrevem a genealogia das principais famílias do reino de Portugal na Idade Média. Alexandre Herculano publicou-os no séc. XIX, na sua obra "Portugaliae Monumenta Historica". Ei-la:

Este he o linhagem dos mui nobres e muy honrados ricos-homens, e filhos-dalgo da Maya, em como elles vem direitamente do muito alto e mui nobre rey D. Ramiro; e este rey D. Ramiro seve casado com huma rainha, e fege nella rey D. Ordonho; e pois lha filhou rey Abencadão que era mouro, e foilha filhar em Salvaterra no logo que chamão Myer: entom era rey Ramiro nas Asturias: e quando Abencadão tornou adusea para Gaya, que era seu castello, e quando veo rey Ramiro não achou a sa molher e pesoulhe ende muito, e enviou por seu filho D. Ordonho e por seus vassallos, e fretou saas naves, e meteuce em ellas, e veyo aportar a Sanhoane da Furada; e pois que a nave entrou pela foz cobrioa de panos verdes, em tal guiza que cuidassem que erão ramos, ca entonce Douro era cuberto de huma parte e da outra darvores; e esse rey Ramiro vestiosse em panos de veleto, e levou consigo sa espada, e seu corno, e falou com seu filho e com os seus vassalos que quando ouvissem o seu corno que todos lhe acorressem, e que todos jovecem pela ribeira per antre as arvores, fora poucos que ficassem na nave para mantela, e el foice estar a huma fonte que estava perto do castello; e Abencadão era fora do castello, e fora correr seu monte contra Alfão; e huma donzella que servia a rainha levantouce pela menhã que lhe fosse pela agoa para as mãos; e aquella donzella havia nome Ortiga; e ella na fonte achou iazendo rey Ramiro, e nom o conheceo, e el pediolhe dagoa pela aravia e ella deulha por hum autre, e el meteo hum camafeo na boca, o qual camafeo havia partido eom sa molher a rainha pela meadade; el deuse a beber, e deitou o anel no autre, e a donzella foice, e deo agoa a rainha, e cahio-lhe o anel na mão, e conheceoo ela logo: a rainha perguntou quem achara na fonte: ella respondeu que não era hi ninguem: ella dice que mentia, e que lhe nom negace, ca lhe faria por ende bem, e merce; e a donzela lhe disse entom que achara hum mouro doente e lazarado, e que lhe pedira d'agoa que bebece, e ella que lha dera; e entonce lhe disse a rainha que lhe fosse por el, e se hi o achasse que lho adusese. A donzela foi por el, e dicelhe ca lhe mandava dizer a rainha que fosse a ella; e entonces rey Ramiro foise com ella; e el entrando pela porta do paço conheceo-o a rainha, e dicelhe -- «Rey Ramiro quem te aduse aqui?» -- E el lhe respondeu -- «ca o teu amor» --: e ella lhe dice que vinha a morrer, e elle lhe respondeu, ca pequena maravilha; e ella dice a donzela que o metese na camara, e que lhe não dese que comese nem que bebece; e a donzela pensou del sem mandado da rainha; e el jazendo na camara chegou Abencadão e derãolhe que jantace, e depois de jantar foise para a rainha; e desque fizerão seu plazer, disse a rainha -- «se tu aqui tivesses rei Ramiro, que lhe farias?» -- O mouro então respondeu -- «o que el a mi faria: matalo.» -- Então a rainha chamou Ortiga que o adusese da camara, e ella assim o fez, e aduseo ante o mouro, e o mouro lhe disse -- «es tu rey Ramiro?» -- e elle respondeu -- «eu sou» -- e o mouro lhe perguntou -- «a que vieste aqui?» -- elrey Ramiro lhe disse entom -- «vim ver minha molher que me filhaste a torto; ca tu havias comigo tregoas, e nom me catava de ti:» -- e o mouro lhe disse -- «vieste a morrer; mas querote perguntar: se me tiveces em Mier que morte me darias?» -- Elrey Ramiro era muito faminto e respondeolhe assim -- «eu te daria um capão assado e huma regueifa, e fariate tudo comer, e dartehia em cima en sa çapa chea de vinho que bebesses: em cima abrira partas do meu curral, e faria chamar todas as minhas gentes, que viessem ver como morrias, e fariate sobir a um padrão, e fariate tanger o corno, ate que te hi sahice o folego.» -- Então respondeo Abencadão -- «essa morte te quero eu dar.» -- E fez abrir os currais, e fezeo sobir em hum padrão que hi entom estava; e começou rey Ramiro enton em seu corno tanger, e começou chamar sua gente pelo corno que lhe acorressem, ca agora havia tempo; e o filho como ouvio, acorreolhe com seus vassallos, e meterão-se pela porta do castello, e el deceuse do padrom adonde estava, e veyo contra elles, e tirou sa espada da bainha, e descabeçando ata o menor mouro que havia em toda Gaya, andarão todos a espada, e nom ficou em essa villa de Gaya pedra sobre pedra que tudo não fosse em terra; e filhou rey Ramiro sa molher com sas donzellas, e quanto haver ahi achou, e meteu na nave, e quando forão a foz d'Ancora amarrarão as barcas, e comerão hi e folgarão, e D. Ramyro deitouce a dormir no regaço da rainha, e a rainha filhouce a chorar, e as lagrimas della caerão a D. Ramiro pelo rostro, e el espertouse, e diselhe, porque chorava, e ella diselhe -- «choro por o mui bom mouro que mataste» -- e então o filho que andava hi na nave ouvio aquella palavra que sa madre dissera, e disse ao padre -- «padre não levemos comnosco mais o demo.» -- Entom rey Ramiro filhou uma mo que trazia na nave, e ligoulha na garganta, e anchorouha no mar, e des aquella hora chamarão hi Foz d'Ancora. Este Ramiro foice a Myer e fez sa corte, e contoulhe tudo como lhe acaecera, e entom baptisou Ortiga, e casou com ella, e louvoulho toda sa corte muito, e poslhe nome D. Aldara, e fege nella hum filho, e quando naceo poslhe o padre o nome Albozar, e disse entom o padre, que lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia; e morreo rey D. Ramiro. Deos lhe aya saude a alma, requiescat in pace.

(in Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 180-181; transcrito do Projecto Vercial)

Comentários: 2

Blogger Jorge Guimarães Silva escreveu...

É verdade que não aproveitamos a nossa magnífica história, o que é uma pena. Fica a chamada de atenção ás autoridades (in)competentes.

23 fevereiro, 2006 19:54  
Blogger CN escreveu...

outro povo, mais empreendedor, já teria ali um quiosque para vender a quinquilharia do costume e, também, um folheto com a história do local e essa lenda que fez o favor de me ensinar.

23 fevereiro, 2006 20:22  

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