20 novembro 2006

A "piação" de Minde

Coreto da vila de Minde«O segredo é a alma do negócio». Assim poderia dizer qualquer minderico (natural da vila de Minde) para explicar a existência na sua localidade de um falar único e inconfundível: o minderico ou "piação dos charales do Ninhou" (falar dos naturais de Minde).

Minde é uma pequena vila situada num recôncavo da Serra de Aire, pertencente ao concelho de Alcanena, distrito de Santarém. Nela se desenvolveu uma indústria têxtil que produziu, entre outras coisas, mantas, as quais se tornaram famosas.

Para proteger da curiosidade dos estranhos os segredos do fabrico e da venda das suas mantas, os mindericos criaram um linguajar próprio, que só eles entendem. Este linguajar não é uma língua nem um dialecto. É uma gíria, constituída por um vocabulário inventado, o qual é utilizado no lugar do vocabulário português. A gramática do minderico é exactamente a mesma que a da língua portuguesa.

No ensaio "O Calão minderico, uma sub-variante da língua portuguesa em Portugal," de João Ferreira, encontra-se uma carta escrita em minderico que passo a transcrever, mantendo a ortografia antiga original:

Carranchano

Estive hontem no parreiral do Ninhou. O fundador do Covão ás 10 do Bandarra mandou-me a mulher do Francisco Lobo ao parreiral a fim de cavalleirar em sua do Quincas.

Para que o cardeta avalie o cavalleiro, ponha os das orelhas.

Em cima d’uma do Casal Farto mirantava-se n’uma do Juncal o filho da Santinha lançando bispo. Uma da Amora com o sogro do António Perinho e dois da Marinha; mettemos pois na tosadeira alem do genro do José Felipe, linhas tortas, renhanhé, sogro do Manoel Lico, do gaiva ou filho do Troia. Á sobre a de Bolleiros matto da portella, mães do Val da Serra, chinezas, dos coutos e por ultimo venezo com batarraba.

Como á hora de cavalleirar o malhado traz mais um, appareceu o Estevães do Ninhou com ares densca. Se visses a maneira como mettia na tosadeira o genro da Bia e o saltacatrepa!... Os da Marinha andavam sempre nas gambias. O folho da Costa e filho de Matildes, oh, Deus!...

Às 4 do Bandarra sentado na jaleca do meu Antonio d’Almeida tomava o d’el-rei para a minha do Domingos Pedreiro, em Amiaes.

N.B. A Arraiollos subiu, as belicas das do Alegre baixaram e a sogra do irmão do Francisco Vaz, d’Aljubarrota estaciona.

Teu Filho do Fernando.

José Ramos, de Amiaes.


Tradução enviada pelo CAORG em 7 de Dezembro de 2003:

Amigo,

Estive ontem em Minde e o Lourenço Coelho ao meio-dia mandou-me a criada a casa chamar-me para jantar em sua companhia.

Para que o amigo possa fazer ideia do jantar, ouça.

Em cima da mesa via-se uma terrina de sopas fumegante, uma grande garrafa cheia de vinho e dois copos.

Metemos na pá do bucho, além das sopas, vaca, capado, carne de porco, galinha e frango. À sobremesa queijo, azeitonas, laranjas, maçãs e por último arroz doce.

Como à hora do comer sempre o diabo traz mais um, apareceu o padre cura com uma fome canina. Se visses a gana com que se atirava ao presunto e ao capado! Os copos andavam numa roda viva. O pão e o vinho, oh! Santo Deus!

Às quatro da tarde montei-me no meu burro e tomei o caminho da minha casa nos Amiais.

Nota: A lã subiu de preço, as peles de cabra baixaram e a cera conserva o mesmo preço.

Teu amigo,

José Ramos, dos Amiais

O ensaio de onde retirei esta carta, assim como a sua tradução, também inclui um pequeno vocabulário, mas existe um vocabulário mais numeroso minderico-português e português-minderico neste outro sítio.


Pode ser encontrada informação mais completa sobre o minderico na página que lhe é dedicada no portal Minderico. (Acrescentado em 23 de Fevereiro de 2007).

Comentários: 6

Blogger a.leitão escreveu...

É sempre um prazer passar por aqui.
Estas pequenas coisas são aquelas que formam e são razão de ser de um grande povo. Até quando?

21 novembro, 2006 00:01  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Boa pergunta: até quando? Estas pequenas coisas, que também fazem parte da cultura de um povo, tendem a desaparecer, face à uniformização imposta pela globalização.

Já estive duas ou três vezes em Minde, não por causa da gíria nem da vila propriamente dita (que não tem nada de especial), mas por causa dos curiosos fenómenos geológicos existentes nas suas proximidades. Não me lembro de ter ouvido por lá alguém falar minderico; só português. No entanto, há lá duas ou três casas comerciais que têm o seu nome em minderico, o que me deixou "a ver navios"...

Quantas pessoas é que já visitaram as grutas de Santo António, Alvados e Mira de Aire, sem que suspeitassem minimamente que ali ao pé se falava uma tão curiosa linguagem?

21 novembro, 2006 23:33  
Blogger Soberano Kanyanga escreveu...

Amigo Denudado,
É para mim um prazer estar aqui na tua página. Pequenas narrativas históricas como essa que nos brindas fazem a verdadeira História de um povo ou povos aglutinados. Como professor de Historia de formação tens a minha nota 20 no nosso modelo lusitano.

E mais, tenho seguido também esses passos contando (rebuscando) provérbios de um povo que só agora ganha Nome com introdução da língua Ngoya (sub-grupo kimbundu) na grelha de programas da Rádio Ngola Yeto( A emissora em línguas nacionais ou locais angolanas).

Desde já embora tens o meu convite para visitar http://olhoensaios.blogspot.com

Soberano Canhanga

23 novembro, 2006 14:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amigo Canhanga, foi com muito gosto que visitei o teu outro blog, onde vais colocando os provérbios que a tua gente recita na tua língua materna. Como podes verificar, já coloquei o link para esse blog na coluna aqui ao lado. «Voz do povo, voz de Deus», já diziam os antigos desta multissecular Sabedoria das Nações.

Nunca ouvi a estação Ngola Yetu. Da Rádio Nacional de Angola apenas consegui apanhar aqui em Portugal, em ondas curtas, o Canal A, em condições geralmente más. A Rádio Ecclésia, pelo contrário, escutava-se espectacularmente bem há 4 a 5 anos, também em ondas curtas. Ouvia-se tão bem como a RDP Antena 1 ou a Rádio Renascença. Não estou a exagerar; a Ecclésia era frequentemente a rádio que melhor se ouvia àquela hora em toda a faixa das ondas curtas! Melhor do que a BBC, a Voz da América ou a Rádio França Internacional!

Como sabes muito melhor do que eu, o governo angolano não dá autorização à Rádio Ecclésia para transmitir fora de Luanda. Para contornar a proibição, os responsáveis pela rádio alugaram tempo de antena (1 hora diária) num poderoso emissor de ondas curtas na Alemanha, a fim de cobrir Angola inteira. A emissão ia de Luanda para a Alemanha via satélite e da Alemanha era irradiada de volta para Angola... Depois a Ecclésia trocou o emissor da Alemanha por um outro na África do Sul e as condições de recepção, por cá, passaram de excelentes a péssimas. A Ecclésia deixou praticamente de se ouvir. Agora, esta aventura acabou, talvez porque tenha acabado o dinheiro. Tanto quanto sei, a Rádio Ecclésia está outra vez a transmitir só em FM em Luanda, não é assim?

O website da Rádio Ecclésia está reduzido à expressão mais simples e não tem emissão online nem nada. Apenas uns jingles promocionais da referida emissão em ondas curtas. E a LAC, sabes se tem a emissão online?

24 novembro, 2006 00:48  
Blogger Deriva escreveu...

cópio covano,
gostei muito que tenha falado na minha terra. realmente poucas pessoas falam fluentemente o minderico mas nao podemos deixar que morra de todo. Obrigada pela divulgação

uma minderica (xaral)

24 novembro, 2006 21:01  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amiga Krasiva, já me chamaram muitos nomes, mas "cópio covano" é que ainda não...

Pode informar-me se o "polje" de Minde já começou a encher-se de água? Se isso ainda não aconteceu, não deve demorar muito a formar-se o lago aos pés de Minde, a avaliar pela chuva diluviana que tem caído.

Obrigado pela visita.

24 novembro, 2006 23:12  

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