01 dezembro 2006

O Cancioneiro do Niassa


O Cancioneiro do Niassa é um conjunto de letras adaptadas à música de fados e de canções, escritas entre 1967 e 1973 por militares portugueses que cumpriram a sua comissão no Niassa, noroeste de Moçambique, combatendo os guerrilheiros nacionalistas da Frelimo. O Cancioneiro do Niassa é, por isso, um valioso repositório daquilo que pensavam e sentiam muitos dos militares portugueses que foram mobilizados para a frente de batalha, em defesa do império colonial português.

Na Internet existe, pelo menos, um sítio que ao Cancioneiro do Niassa é dedicado. Contém, inclusive, gravações originais, feitas em 1969/70, em Metangula, no Niassa. Tomo a liberdade de publicar a seguir, das letras de fados existentes no sítio, a que me pareceu ter maior qualidade literária.


A HISTÓRIA DO MANUEL
(Fado Canção)


Manuel era feliz
Numa aldeia lá da serra.
A guardar o seu rebanho
Não sabia o que era a guerra.


Coro 1

Se em toda a Terra todos os homens
Dissessem não, dissessem não,
Nunca os jovens como o Manel
Teriam morto o seu irmão.



Mas os homens, que são maus,
Vão tirar a paz à serra
E o Manuel deixa o rebanho
E, um dia, parte pr'a guerra.


(Coro 1)


Morrem homens, aos milhares,
Está de luto toda a terra
E o Manel, que era pastor,
Sabe agora o que é a guerra.


(Coro 1)


Manuel parte pr'a guerra,
Leva em paz o coração.
Manuel parte chorando,
Manuel parte, rezando:
Não matarei meu irmão.


(Coro 1)


Manuel, pelo mar fora,
Vai pensando em sua mãe!...
Lá na aldeia, onde o criou,
De menino, lhe ensinou
A ser um homem de bem.


Coro 2

Pensa nas mães que em toda a terra
Vêem seus filhos partir p'ra matar...
Elas que sempre os ensinaram
A ser fiéis à lei de amar.



Manuel, na noite escura,
Sabe que a hora chegou.
Não tem medo de lutar,
Pois sabe que foi para amar
Que sua mãe o criou.


(Coro 2)


Manuel não usa a arma,
Tem no corpo o frio chão.
Olha o outro, à sua frente,
Diz-lhe baixo e tristemente:
Porque me mataste, irmão?


(Coro 2)


(Coro 1)


O sítio que referi sobre o Cancioneiro do Niassa tem duas páginas de particular interesse:

- http://www.joraga.net/cancioneirodoniassa/index.htm

- http://www.joraga.net/pags/52cancNiassa.htm


Depois de ter publicado este artigo, encontrei um outro sítio que contém canções do Niassa. O sítio chama-se A Guerra Colonial e inclui também o seguinte poema, que foi escrito por um guerrilheiro nacionalista e foi encontrado por tropas portuguesas numa base da Frelimo na região do Lunho, Niassa.


POEMA DO MILITANTE

Mãe,
Eu tenho uma espingarda de ferro!
O teu filho,
Aquele a quem um dia viste acorrentarem
E choraste,
Como se as correntes prendessem e ferissem
As tuas mãos e os teus pés
O teu filho já é livre, Mãe!
O teu filho tem uma espingarda de ferro
A minha espingarda
Vai quebrar todas as correntes,
Vai abrir todas as prisões,
Vai matar todos os tiranos,
Vai restituir a terra ao nosso povo,
Mãe, é belo lutar pela liberdade!
Há uma mensagem de justiça em cada bala
que disparo
Há sonhos antigos que acordam como
pássaros
Nas horas de combate, na frente de batalha,
A tua imagem próxima desce sobre mim.
É por ti também que eu luto, Mãe.
Para que não haja lágrimas nos teus olhos.


No sítio não se diz quem foi o autor do poema, mas sabe-se quem foi. O nome do guerrilheiro-poeta é Jorge Rebelo e conhecem-se muito poucos poemas seus.


Comentários: 6

Blogger inominável escreveu...

de emocionar até às lágrimas, se não fosse tão mau deixar este lugar-comum como comentário a poemas tão sentidos.

03 dezembro, 2006 11:58  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Inominável, muito já se escreveu sobre o Cancioneiro do Niassa e muito mais se irá escrever ainda, com certeza. Permito-me, contudo, realçar aqui dois ou três aspectos que podem ser encontrados nestes poemas.

Um primeiro aspecto é a total ausência de ódio pelos guerrilheiros em particular e pelos africanos em geral. No caso dos guerrilheiros, então, chegam-se a encontrar manifestações de respeito e até de admiração, como no Fado do Turra, onde se diz a certa altura que os guerrilheiros têm «a alma nobre».

Em contrapartida, encontramos uma extraordinária violência no tom utilizado em relação à hierarquia militar (Hino do Lunho) e aos colonos da cidade de Lourenço Marques, actual Maputo (Fado das Comparações). Aqueles homens sentiam-se muito mais próximos dos guerrilheiros que combatiam, do que dos colonos por quem se sacrificavam.

Isto conduz-me ao segundo aspecto, que é o de que já se podem ver aqui as sementes do que viria a ser o 25 de Abril e a descolonização. Estes homens sentiam-se injustiçados, mas ainda não revoltados; por isso se serviram de fados mas exprimir os seus sentimentos. No entanto, a revolta não tardou em chegar, com o derrube do regime em 1974. Lendo os poemas do Cancioneiro do Niassa, poderemos compreender melhor porque é que a queda do anterior regime foi obra de militares e não de civis, como pretendiam os comunistas.

03 dezembro, 2006 23:13  
Blogger inominável escreveu...

o que aprendo com o teu blogue nenhum livro de história me ensinou... porque a história também é, na verdade, controlada... e a que vem nos manuais escolares, mais ainda... digo eu, que sou professora :)

05 dezembro, 2006 00:00  
Blogger Unknown escreveu...

Não me lembro como aconteceu, mas tenho o Original stencilado e manuscrito. Aliás só há pouco tempo o encontrei perdido na cave. A Cassete, que ouvi gravar, desaparece-me. Estive no Lunho, destacado ano e meio.
É verdade que a revolta era contra os "carolas" e não os "turras". Basta ir a uma livraria e ler as 2 ultimas áginas do livro "NÓ-GÓRDIO): Na lista de pessoal destacado para combate não há - uma exceção, penso que fuzileiro -nenhum oficial do quadro(xico), apenas milicianos.
Os Xicos não estavam "chateados" com o estado a que Estado chegou. Estavam, sim, "chatedos" com o seu estado.Não queriam ir para a mata, mas chatearam-se quando o Estado, desesperado, nomeou milicianos para as suas categorias. Foi uma reacção corporativa. Mas a história dos povos faz-se assim, aos tranbolhões. O 25/4 foi um dos dias mais felizes da minha vida, mas não agradeço nada aos militares, antes pelo contrário.
Quizeram logo ser os novos Mandantes.Com os resultados que se viram, até hoje.É só pamporra.

09 dezembro, 2006 18:56  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Prezado Carlos, muito obrigado pela sua oportuna intervenção.

Se me permite, atrevo-me a corrigir uma sua afirmação, que é a seguinte:

Os Xicos (...) chatearam-se quando o Estado, desesperado, nomeou milicianos para as suas categorias.

Em rigor, não foi por causa dos milicianos propriamente ditos que os "Xicos" se chatearam. Isto é, não foi por causa dos oficiais milicianos que regressariam ao estado civil uma vez acabada a sua comissão. Foi por causa daqueles oficiais milicianos que resolveram enveredar pela carreira militar ("meteram o Xico", na gíria castrense), ingressando no chamado Quadro Especial de Oficiais (QEO). Estes é que foram a causa da criação do Movimento dos Capitães.

Parece-me, por outro lado, correcto afirmar que os oficiais do Quadro Permanente estiveram muito pouco envolvidos em acções de combate durante a guerra colonial, à excepção dos primeiros anos em Angola. Ou eles procuravam seguir a carreira do Estado-Maior, ou então, servindo-se dos conhecimentos que possuissem no interior do aparelho militar, metiam "cunhas" para que fossem colocados em posições que não envolvessem muitos riscos.

Mesmo assim, houve oficiais de carreira que "comeram o pão que o diabo amassou". Conheci pelo menos dois capitães que estiveram nesta situação. Um deles ficou completamente maluco (maníaco-depressivo) ao comandar uma companhia de caçadores no sul da Guiné. O outro também passou por muito maus bocados no norte de Angola, ao comandar uma das pouquíssimas companhias de incorporação da colónia que estiveram efectivamente envolvidas na guerra (não falo, como é evidente, dos "Flechas" nem de outras "tropas" fandangas, como a OPVDCA, mas sim de tropas do Exército), a qual sofreu um número de mortos e de feridos muito considerável.

Resta-me informar que não fui, não sou, nem nunca seria militar de carreira.

10 dezembro, 2006 02:54  
Blogger Unknown escreveu...

Vi muito furriel e alferes serem graduados em alferes e capitães porque não havia quem dos xicos. Ficavam chateados: andámos nós na academia......

10 dezembro, 2006 18:43  

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