25 fevereiro 2010

As melhores imagens de Ciência e Engenharia 2009

Uma imagem vale mais do que mil palavras, costuma-se dizer. Poderíamos acrescentar que uma imagem também vale mais do que mil equações ou do que mil fórmulas químicas. O que seria do estudo dos fractais, por exemplo, se não pudéssemos ver imagens da sua incrível beleza? Alguém se preocuparia em estudá-los, se os fractais só pudessem ser descritos por palavras ou por fórmulas matemáticas?

A imagem é importantíssima para a compreensão de muitos fenómenos. Mesmo um simples desenho esquemático, por mais grosseiro que seja, pode levar-nos a entender muito mais facilmente ideias, conceitos ou fenómenos. Dos nossos cinco sentidos, a visão é o mais importante para a compreensão do mundo e para a nossa interação com ele. O ser humano é predominantemente visual.

O ser humano tem igualmente uma inteligência racional e tem uma inteligência emocional, as quais estão repartidas pelos seus hemisférios cerebrais. Quando o sentido da visão apresenta uma imagem ao seu cérebro, o ser humano pode sentir uma emoção mais ou menos intensa (prazer estético, melancolia, medo, etc.), enquanto analisa simultaneamente o conteúdo da imagem e procura compreender o que ela significa.

Que melhor exemplo pode haver, do que acabo de dizer, do que a imagem acima reproduzida, vencedora na categoria de fotografia da Competição Internacional de Visualização em Ciência e Engenharia 2009, organizada pela National Science Foundation, dos Estados Unidos, e pela revista Science?

Esta imagem, da autoria de Sung Hoon Kang, Boaz Pokroy e Joanna Aizenberg, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, é uma fotografia por microscópio eletrónico de uma esfera de polistireno, com cerca de 2 micrómetros (microns) de diâmetro, aconchegada por um conjunto de microfibras de resina epoxy. As fibras suportam e parecem proteger a esfera, que está representada com a cor verde. Uma fibra isolada não conseguiria suportar a massa da esfera, mas várias fibras juntas já o conseguem, numa demonstração prática do provérbio "A união faz a força".

Tal como está representada, esta imagem sugere uma mensagem ecológica: a Terra, representada pela esfera verde, deve ser protegida e acarinhada por nós. Mas isto só será possível se todos juntos colaborarmos na sua proteção.

Esta e outras imagens premiadas nas diversas categorias da competição podem ser admiradas nesta página em inglês ou nesta.

18 fevereiro 2010

Lendas dos tesouros de Valongo



Encosta da Serra de Santa Justa e vale do Rio Ferreira vistos da aldeia de Couce, no concelho de Valongo (Foto: Campo Aberto)


O Padre Joaquim Alves Lopes Reis conta assim a lenda das riquezas supostamente deixadas pelos mouros nos fojos de Santa Justa:

"Ainda a estes tempos de historia dubia remontam outros factos que nos conta a lenda e conserva a tradição. Queremos referir-nos à crença antiga que existia aqui de que os mouros tinham deixado nos fojos da Santa Justa thesouros escondidos e grande quantidade de ouro e prata, crença que augmentou muitissimo com o apparecimento de um celebre roteiro, escripto em letra redonda, que, comendo varios pacovios, dizia estarem em certos e determinados logares cousas riquissimas que nunca ninguem viu, nem chegará a ver.

Arrastados pelo que dizia esse livro, que se acreditava como se fosse uma Escriptura, vinham a esse monte muitos illudidos que a todos os dias e a todas as horas entravam pelas cavernas e furnas, seguindo as indicações que tinham e sabiam, e entre eles um tal Enxota diabos dos lados de Avintes, que com essas artes magicas e encantamentos poude tratar com o Espirito guardador d’estes thesouros a facil maneira de os possuir.

Combinou o negocio não sei se com escriptura e papel sellado (quem seria o juiz n’esse tempo?) e no dia aprazado appareceu com grande numero de carros que queria carregar de ouro. Era pelas onze horas da manhâ de um dia nebuloso e triste e o Enxota havia-se adiantado da comitiva para pedir o cumprimento do tratado que havia feito. Mas, quando despreoccupados e alegres todos esperavam para breve a ordem de enriquecer, levantou-se no monte tamanho furacão que carros, bois e povo, tudo, voando pelos ares, foi parar a grandes distancias, recebendo tal lição que nunca mais pensaram em ser ricos por esta forma.

Com um outro individuo de Vallongo chamado o ‘Avô-Tó’ aconteceu tambem que, tendo um dia de noute tratar com um certo espirito, que era evocado altas horas, a consecução de grande quantidade de ouro, appareceu lá n’outra occasião combinada e recebeu, contava elle, dous saccos cheios de reluzentes moedas de ouro com que carregou um jumento e veio para casa com a condição de em todo o caminho não pronunciar palavra. Mas o homem não foi fiel á promessa. No termo quasi da sua empreza, vendo que o animal ia a tropeçar bastante, não pôde deixar de soltar um terrivel chó! que foi causa de que ao abrir os saccos não encontrasse, senão terra negra e fria."

(Encontrado em Distritos e Concelhos de Portugal)



O Fojo das Pombas, na Serra de Santa Justa, concelho de Valongo, foi aberto pelos romanos para a extração de ouro (Foto: Valongo Ambiental)

11 fevereiro 2010

Uma das melhores orquestras do mundo



A Orquestra Juvenil Simón Bolívar, da Venezuela, cujo diretor artístico é o maestro Gustavo Dudamel, nascido em 1981


De acordo com uma lista publicada há tempos na revista Gramophone, a Orquestra Juvenil Simón Bolívar, da Venezuela, é uma das dez melhores orquestras sinfónicas de todo o mundo, juntamente com as prestigiadíssimas orquestras Filarmónica de Viena, Filarmónica de Berlim, Concertgebouw de Amsterdão, Sinfónica de Londres, Staatskapelle de Dresden, Filarmónica de São Petersburgo, Sinfónica de Chicago, Sinfónica de Boston e Orquestra de Cleveland. No entanto, ao contrário do que sucede com todas as outras orquestras da lista, que são compostas por músicos profissionais experimentados e com longos anos de carreira, a Orquestra Simón Bolívar é composta por músicos jovens, que só agora é que se estão a iniciar. Como é que isto é possível?

A Orquestra Juvenil Simón Bolívar é composta pelos melhores músicos provenientes das orquestras juvenis que existem espalhadas por toda a Venezuela, integradas na Fundación del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles e Infantiles de Venezuela (FESNOJIV), também conhecida por El Sistema. Esta fundação foi criada em 1975 por José Antonio Abreu, com a finalidade de salvar, através da música, as crianças e os jovens dos perigos da droga e da delinquência, e atualmente abrange 120 orquestras juvenis e 60 orquestras infantis!

Os milagres não acontecem por acaso; é preciso fazê-los acontecer. O milagre da música na Venezuela também não aconteceu por acaso. Ele é o fruto de muitos anos de empenho, esforço, dedicação e trabalho no desenvolvimento de um projeto arrojado e ambicioso. O fruto deste projeto, de que a Orquestra Simón Bolívar é o coroamento, é verdadeiramente assombroso, como se pode ouvir a seguir.



Segundo andamento (Allegro) da Sinfonia nº 10 de Dmitri Chostakovitch, pela Orquestra Juvenil Simón Bolívar dirigida por Gustavo Dudamel



Terceiro andamento (Scherzo) da Sinfonia nº 3 (Eroica) de Ludwig van Beethoven, pela Orquestra Juvenil Simón Bolívar dirigida por Gustavo Dudamel



Mambo, dança sinfónica do musical West Side Story, de Leonard Bernstein, pela Orquestra Juvenil Simón Bolívar dirigida por Gustavo Dudamel

05 fevereiro 2010

Nossa Senhora da Boa Nova


(Foto:
Coisas da Cultura)


Que construção é esta, afinal? É um castelo, uma capela ou nem uma coisa nem outra?

É uma coisa e outra ao mesmo tempo. Trata-se da capela-fortaleza gótica de Nossa Senhora da Boa Nova, situada a cerca de três quilómetros de Terena, concelho do Alandroal, no Alentejo profundo. Esta curiosa construção foi erigida no séc. XIV, diz-se que por ordem de D. Maria, que era filha do rei de Portugal D. Afonso IV e casada com o rei de Castela.

A "fermosíssima Maria" teria vindo pessoalmente a Portugal, para pedir a seu pai que ajudasse o rei de Castela a combater os mouros, naquela que ficou para a História como Batalha do Salado. D. Maria teria mandado construir este santuário no preciso lugar em que ela se encontrava, quando lhe foi dada a notícia (a "boa nova") de que D. Afonso IV aceitara participar na batalha.

É um templo verdadeiramente notável, tanto por fora como por dentro. O visitante não deverá desanimar se "der com o nariz na porta", encontrando a capela fechada. A chave costuma estar na posse de uma residente de uma das casas fronteiras à capela. Vale a pena ver o interior.

04 fevereiro 2010

Carta do soldado Renato


Um exemplar de aerograma militar, o suporte em papel em que os soldados portugueses enviados para a guerra colonial escreviam a sua correspondência (Foto: Museu do Papel)


À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata, sabes?, é uma trégua fuzilada, um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite. Escrevo-te, amor, por não saber nem o dia nem a hora. Com o medo de estar apenas vivendo à beira do medo. Que escrevo. Colunas partem à Magina, recebem de volta a notícia dos ataques aos quartéis do Norte, o M'Pozo, a Mama Rosa, a Madimba, o Luvo, e a gente pensa que há-de ser um dia também a destruição de Calambata, amor. Amor, diz-se já que Calambata é apenas o som da nossa respiração: ama-se a vida devagarinho, como nos repugna o cheiro a bálsamo dos mortos que partem a qualquer hora do dia. Palavras dispersas pingam da infusa do silêncio. Palavras. As palmeiras, por exemplo. Os imbondeiros, as mulembas. Perderam a memória dos séculos. Um dia, amor, as armas serão somente objectos de museu: os campos hão-de lavrar-se com charruas, nas oficinas trabalharão bigornas, puas, enxós, o esmeril das mãos que nos combateram, e a piaçaba dos cabelos encher-se-á da poeira das madeiras, nas serrações. Era bom, amor, que se ouvissem os guindastes nos cais, os alcatruzes das noras, o uivo do vento nas grandes searas do Sul. Bom que o mar erguesse a voz um pouco acima do sal até à alegria das lágrimas. Amor, é provável que não existam brancos inimigos nas picadas de Nambuangongo. Os brancos não podem, amor, continuar, aqui nas serras da Calambata, a alimentar a morte das minas, dos morteiros e dos canhões. Será chegado o tempo, de se cobrirem as crateras das granadas, de despoletar os trilhos, de pintar os furos das balas no corpo das árvores da Binda. Por isso te escrevo, amor, antes da minha morte. Nunca pisei uma lavra de milho ou mandioca, sabes? Escrevo. Não chicoteio o suor do negro da tonga. Não troco meu sapato velho, minha cerzida camisa, meu garrafão de aguardente, pelo corpo da menina no alembamento. Escrevo, amor: reconstruí vós as sanzalas de quantos se foram embora, para que possam ainda regressar, viver. Pergunta-lhes por mim, amor. O que fazia. O que inventava por vezes. O que escrevi eu aqui. Que branco caçambuleiro esse, que diferente estava me chamar ainda? Que branco esse, polícia lhe tinha raiva, lhe estava sempre xingar a voz da denúncia, quase mesmo ia caindo na prisão do esquecimento? Que branco, amor? Minha pele tem o ardor das anchovas da ração de combate, da pasta de fígado (os perseguidos guerrilheiros sul-africanos, lembras-te, amor?). Mas tudo isso eu fui trocando pelo desejo e pelo gosto da moamba de galinha e pelo ácido do abacaxi com pancadinha discreta na curva do ombro, como a dizer: coragem!

É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre.

João de Melo, escritor português, in Autópsia de Um Mar de Ruínas

(Respigado de "Navegar é Preciso")