25 abril 2010

A Guidinha também escreveu sobre o 25 de Abril


O CHEFE DO MEU PAI ERA UM DEMOCRATA E NINGUÉM SABIA...

Ora cá estou eu outra vez a contar as coisas que se passam lá em minha casa e no bairro da Graça em que vivo sim porque eu vivo no bairro da Graça e tenho muita honra nisso porque não há nada para uma mulher como ser Graciosa pois como toda a gente sabe houve um 25 de Abril e cá em casa esse 25 de Abril foi bestial para começar o meu pai só soube que era 25 de Abril mais tarde lá por volta das onze que é quando ele lá no trabalho acaba de ler o jornal e liga o rádio de maneira que já uma data de pessoas sabia que era vinte e cinco de Abril e ainda lá no trabalho estava a ler no Diário de Notícias que o presidente Américo Tomaz tinha ido visitar um salão de antiguidades cá por mim o que me espanta é que o tivessem levado para um regimento porque o podiam ter deixado no tal salão de antiguidades para ele não estranhar o ambiente mas adiante que o que interessa é o que aconteceu ao meu pai pois como eu ia dizendo tinha ele acabado de ler essa interessante notícia das antiguidades se andarem a visitar umas às outras e uma outra do deputado Ferreira da Silva do Porto coitadinho ter pedido acções de repressão contra a situação anárquica que visava gerar o descontentamento e mais não sei o quê e vai ouviu na rádio que era vinte e cinco de Abril e ficou a suar a suar a suar diz ele que ficou a suar tanto que se lhe colou o dito à cadeira sem saber o que havia de fazer mas lá conseguiu descolá-lo e foi até ao gabinete do chefe que estava naquele momento a redigir uma ordem a dizer que lixava quem faltasse no dia 1 de Maio e disse-lhe que a rádio estava a dizer que havia um movimento das Forças Armadas para derrubar o regime o homem ficou branco e disse que era mentira e que se o meu pai continuasse a espalhar boatos que lhe fazia um processo disciplinar e mais não sei o quê e que era proibido ouvir rádio durante as horas de trabalho e vai o meu pai voltou para a secretária mas ainda ouviu o chefe ligar um transistor que ele esconde numa gaveta quando alguém lhe entra no gabinete e daí a dois minutos o chefe chegou-se ao pé dele e pediu-lhe para ir à rua ver se ouvia qualquer coisa e o meu pai foi e ouviu olá se ouviu e viu olá se viu diz ele que viu uma data de carros de assalto ao Largo do Carmo e que voltou a correr e disse ao chefe o que tinha visto o chefe ainda ficou mais branco e mandou-o para o escritório porque queria fazer umas chamadas confidenciais e vai daí a bocado entrou todo pimpão no escritório e disse que tinha tido conhecimento de ter havido um movimento de revolucionários ingénuos mas que já estavam todos na cadeia e que se o meu pai voltasse a sair outra vez durante as horas de expediente para ir ouvir boatos no Largo do Carmo que tinha de informar a DGS e o meu pai ficou com o dito outra vez colado à cadeira mas foi colagem de pouca dura porque daí a bocado o chefe entrou outra vez branco como a cal da parede e disse ao meu pai para ir outra vez à rua ouvir o que se passava e o meu pai foi olá se foi e viu tanta coisa que esteve para não voltar ao escritório mas como é pai de família etc. etc. voltou e disse o que tinha visto e vai o chefe entrou no escritório e disse que sempre tinha respeitado as ideias políticas de cada um e que deixava sair quem quisesse mas quando toda a gente se ia raspar alguns até já iam na escada entrou um senhor qualquer falou com o chefe um minuto e ele outra vez branco como a cal da parede chegou ao patamar da escada e desatou a berrar que ninguém saía que dava à D. G. S. os nomes de quem saísse que não queria simpatizantes com revolucionários que ia instaurar processos disciplinares a toda a gente e que o meu pai por ter saído duas vezes do escritório ia parar a Caxias tão certo dois e dois serem quatro e estava quase a fuzilar o meu pai e os colegas quando entrou uma data de gente a berrar e a dizer que os que estavam no Carmo se tinham rendido e que o general Spínola tinha ganho e o chefe começou a dar vivas ao general Spínola à democracia ao povo à Pátria só não deu à leitaria da esquina porque não se lembrou sim porque até ao 25 de Abril o miúdo da leitaria estava proibido de entrar lá por o dono da leitaria ter dito uma vez que as guerras de África eram uma infâmia de maneira que se o chefe naquele momento se tivesse lembrado também tinha dado um vivazito ao dono da leitaria vai depois todos se foram embora e quando voltaram no dia seguinte o chefe deu um grande abraço ao meu pai e explicou a todos que se na véspera tinha dito que não admitia na repartição simpatizantes com revolucionários era só porque se a revolução falhasse queria ser ele sozinho a assumir as responsabilidades porque ele era um democrata desde sempre enfim o que eu queria saber era como ele conseguiu manter o segredo tanto tempo e ainda há quem diga que os portugueses não sabem guardar segredos.

Guidinha (Luís de Sttau Monteiro), in A MOSCA, suplemento humorístico do Diário de Lisboa, 11 de Maio de 1974

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