31 dezembro 2010

Música de Franco

A cidade de Kinshasa, que tem quase 9 milhões de habitantes, é a capital política da República Democrática do Congo e a capital de facto de toda a África Central

Por muito que custe a outras capitais, como Luanda ou Libreville, a cidade de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo (ex-Zaire), é a verdadeira capital cultural, humana e social de toda a África Central, pelo menos. Kinshasa exerce uma atração quase hipnótica sobre uma área de influência que se estende muito para além das fronteiras da RDC (que por si só já é um país imenso) e abrange os países envolventes e outros que se encontram mais afastados ainda. Kinshasa é que dita a moda, os hábitos, os gostos e os interesses de milhões e milhões de africanos.

No domínio da música popular urbana, nomeadamente, a influência de Kinshasa tem vindo a ser ao longo dos anos por demais notória. A rumba congolesa, o soukous, o kwassa kwassa e outros ritmos saídos de Kinshasa têm feito dançar gerações sucessivas de africanos em discotecas, bares, pistas de dança ou simplesmente ao ar livre. Em países tão distintos como o Chade, o Quénia ou o Zimbabwe, milhares de cantores e de orquestras ligeiras têm emulado os ídolos da dança e da canção de Kinshasa. Não há ninguém, em toda a África ao sul do Sara, que não conheça a música de OK Jazz, Bella Bella, Franco, Zaiko Langa Langa, Sam Mangwana, Papa Wemba, etc.

De todos os nomes citados, no entanto, há um que se destaca dos restantes pela popularidade extrema que atingiu: Franco. De seu nome verdadeiro François Luambo Makiadi, Franco foi um "monstro sagrado" da música zaiko (zairense-congolesa). Os seus discos venderam-se aos milhões e milhões e, embora já tenha falecido em 1989, Franco continua a ser imbatível em popularidade. Nem Papa Wemba consegue igualá-lo.

O vídeo que se segue é uma gravação feita em 1975 de uma canção de Franco para um programa de televisão. Esta gravação já deve ser em segunda ou terceira mão, porque está a preto e branco. Ora em 1975 a televisão de Kinshasa já emitia a cores e é muito provável, portanto, que a gravação original fosse também a cores. Esta gravação tem a particularidade de ter sido subitamente interrompida por um lacaio do regime de Mobutu Sese Seko. A canção chama-se Liberté (Liberdade) e, como se vê, ela não agrada ao homenzinho. Durante a ditadura de Mobutu o enaltecimento da Liberdade era subversivo.


Liberté, por Franco & Le Tout Puissant OK Jazz

Em 1987, Franco gravou uma canção que alarmou os seus incontáveis fãs. A canção era um dramático apelo ao combate contra o VIH-SIDA. As pessoas perguntaram-se então: «Será que o Franco está com SIDA?» Não estava. Dois anos depois, porém, Franco morria, não de SIDA, mas de hepatite. A canção Attention na SIDA foi um testamento deixado pelo grand maître da rumba congolesa e do soukous. Ouçamo-la.


Attention na SIDA, por Franco & Victoria Eleison

25 dezembro 2010

Natal de 1971

Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
As cinzas de milhões?
Natal de paz agora
Nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
Num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
Roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
Em ser-se concebido,
Em de um ventre nascer-se,
Em por de amor sofrer-se,
Em de morte morrer-se,
E de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
Quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
Num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
Com gente que é traição,
Vil ódio, mesquinhez,
E até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Ou dos que olhando ao longe
Sonham de humana vida
Um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
E torturados são
Na crença de que os homens
Devem estender-se a mão?

Jorge de Sena (1919-1978)


Natividade, de Grão Vasco (séc. XVI)

24 dezembro 2010

Noite de Natal

Era noite de rixas a noite de Natal,
No Morro desamparado ante a vinda do Homem:
As mesmas bebedeiras e o batuque
De um Sábado maior.

Na cubata de adobe,
Sob o imbondeiro tutelar,
Sem a ficção da chaminé
Para o Menino entrar,
Era aí que esperávamos
Em esteiras sob o céu,
A Hora sem brinquedo algum...

E o tempo apenas se contava
Pelo pulsar
De pequeninos corações ansiosos,
Té o Sinal
Que era
Irrompendo na Noite
O canto dos alunos
Da Escola Missionária
Atravessando o Morro...

(-«Canários da Maianga» de Mestre Coelho,
Meninos sofridos de vozes límpidas,
Quantos silêncios vos esperariam?...)

Dormíamos então
Sob a impressão
De uma chuva de estrelas
-Presente de Natal.

Mário António (1934-1989), poeta angolano


Num musseque (favela) de Luanda, Angola (Foto: Adriano Rangel)

19 dezembro 2010

Saramacanos

Um Saramacano em 1910 (Foto de autor desconhecido)

Os Saramacanos (Saramacca ou Saramaka) são um grupo humano composto por descendentes de antigos escravos negros fugidos no séc. XVIII, que vivem em pequenas povoações (no Brasil chamadas quilombos) que se estendem ao longo das margens dos rios a sul de Paramaribo, no Suriname, antiga Guiana Holandesa. Eles são, portanto, o que no Brasil se chama quilombolas e no Suriname bushi-nengre.

Os Saramacanos não são os únicos quilombolas existentes no Suriname. Há outros grupos espalhados pelo país. O que distingue os Saramacanos dos outros quilombolas é o seu idioma, para além de alguns traços culturais próprios que são resultantes da sua vivência em comunidades separadas das dos outros. Os Saramacanos têm uma cultura muito rica, de raízes africanas, e são escultores afamados.

O idioma dos Saramacanos é um crioulo baseado, sobretudo, na língua inglesa, mas que possui fortes influências portuguesas, embora o Suriname nunca tenha sido colonizado por Portugal. Metade do vocabulário saramacano vem do inglês, 35% vem do português e 5% vem de línguas africanas, como o kikongo, gbe, twi, akan ou fongbee. O resto do vocabulário tem sobretudo origem holandesa. O saramacano é atualmente falado por cerca de 40 mil pessoas, residentes no Suriname e também na Guiana (antiga Guiana Inglesa), na Guiana Francesa e até no Brasil (estados do Pará e Amapá).

Foram os escravos negros fugidos de fazendas pertencentes a patrões ingleses, portugueses e holandeses que introduziram os vocábulos das respetivas línguas europeias no crioulo saramacano. Seguem-se alguns exemplos de palavras saramacanas de origem portuguesa:

téla - terra;
súndju - sujo;
paatí - partir;
lío - rio;
mátu - mato;
páu - pau, árvore;
teéja - estrela;
sugúu - escuro;
sómba - sombra;
vë́ntu - vento, ar;
tjúba - chuva;
síndja - cinza;
tapá - tapar;
wómi - homem;
mujë́ë - mulher;
mií - menino, filho;
wómímíí - filho (do sexo masculino);
mujë́ë́míí - filha;
avó - avó;
tío - tio;
avóavo - antepassado;
pái - pai, padrinho, afilhado;
mái - mãe, madrinha, afilhada;
famíi - familiares;
kaabíta - cabrito, criança;
bulíki - burro, burrico;
ganían - galinha, frango;
gánsi - ganso;
patupátu - pato;
gabián - gavião;
pómba - pomba;
gééja - guelra;
lë́un - leão;
makáku - macaco;
kaapátu - carrapato;
bítju - bicho;
kákisa - casca;
puúma - pluma;
lábu - rabo;
wójo - olho;
búka - boca, bico;
gangáa - garganta;
máun - mão, braço, galho;
húnjan - unha, garra;
hánza - asa;
bíngo - umbigo;
básu - baço (órgão);
tiípa - tripa;
suwá - suar;
gumbitá - vomitar;
lëmbë́ - lamber;
babá - babar;
duumí - dormir;
lonká - roncar, ressonar;
sunján - sonhar;
miindjá - mijar;
kaká - cagar;
tëëmë́ - tremer;
paí - parir, dar à luz;
nasí - nascer;
vívo - vivo;
búnu - bom;
fë́bë - febre;
kulá - curar;
kúa - cru, crua;
póndi - podre;
bebé - beber;
tjupá - chupar;
gulí - engolir;
fiidjí - frigir, assar;
jasá - frigir, assar;
kujë́ë - colher;
fáka - faca;
lalá - ralar;
fuúta - fruta;
súki - açúcar;
óbo - ovo;
bisí - vestir;
agúja - agulha;
saapátu - sapato;
kaapúsa - carapuça;
andélu - anel;
kónda - colar de contas;
pénti - pente;
sipéi - espelho;
sikáda - escada;
djaaí - jardim;
foló - flor;
dobá - dobrar;
matjáu - machado;
latjá - rachar;
feegá - esfregar;
paajá - espalhar;
peetá - apertar;
baí - varrer;
basö́ö - vassoura;
félu - ferro;
peégu - prego;
káma - cama;
bulí - bulir;
biá - virar;
lolá - rolar;
toosá - torcer;
kaí - cair;
kulé - correr;
buwá - voar;
koogá - escorregar;
bajá - bailar;
subí - subir;
baziá - baixar;
tooná - tornar;
fusí - fugir;
dendá - entrar;
mandá - mandar;
- dar;
disá - deixar;
paká - pagar, salário;
básu - baixo;
déndu - dentro;
butá - botar;
fiká - ficar;
tapá - tapar, fechar;
zúntu - junto;
lóngi - longe;
fínu - fino;
fúndu - fundo;
töö́tö - torto;
baáku - buraco;
tooká - trocar;
kondá - contar;
túu - tudo;
tjiká - chegar;
kabá - acabar; pronto;
didía - de dia;
amanján - amanhã;
límbo - limpo;
línzo - liso;
munján - molhado;
kéndi - quente;
baasá - abraçar;
pená - sentir pena;
giitá - gritar;
djëmë́ - gemer;
fédja - inveja;
kë́ - querer;
ganjá - enganar;
gafá - gabar;
sábi - saber;
poobá - provar;
ku - e, com;
kandá - cantar;
pidí - pedir;
tapá - tapar;
mandá - mandar;
búja - bulha, disputa;
lánza - lança;
djulá - jurar;
saí - sair;
akí - aqui;
alá - lá, ali;
óto - outro.

Estas e outras palavras constam de um vocabulário elaborado por Jeff Good e existente no sítio World Loanword Database (WOLD).

14 dezembro 2010

Música de João Domingos Bomtempo

João Domingos Bomtempo (1775-1842), compositor português

Há quem chame a João Domingos Bomtempo "o Beethoven Português". Sem querer tirar o grande valor que Bomtempo teve, esta afirmação parece-me claramente exagerada. Não é que Bomtempo fosse mau; Beethoven é que era genial. Se, em vez de compararem João Domingos Bomtempo com Beethoven, o comparassem com Franz Schubert ou lhe chamassem "o Mendelssohn Português", eu estaria completamente de acordo. Agora Beethoven... O grande mestre de Bonn não era comparável com ninguém; ele pertencia a outra galáxia!

Dito isto e para não ser mal interpretado, afirmo claramente que João Domingos Bomtempo foi um grande compositor. Posso até afirmar, sem hesitar, que ele foi um dos melhores compositores da Europa do seu tempo. Se Bomtempo tivesse sido alemão, austríaco, italiano ou francês, o seu nome seria conhecido de todos os apreciadores de música e as suas obras far-se-iam ouvir em todos os auditórios e salões do mundo. Mas Bomtempo era de um país musicalmente periférico chamado Portugal. Ainda por cima exerceu parte da sua atividade no Brasil, que nem sequer fica na Europa. O grande valor que Bomtempo teve impõem-nos, por isso, tanto a portugueses como a brasileiros, a obrigação moral de ouvir e de promover a sua música. Já que mais ninguém o faz, sejamos nós a fazê-lo.

É nesta linha que proponho a escuta de uma obra sua, concretamente o seu concerto nº 1 para piano e orquestra, numa magistral interpretação da grande pianista Nella Maissa. (Devido à sua extensão, o primeiro andamento encontra-se dividido em duas partes).


1ª parte do 1º andamento, Allegro comodo


2ª parte do 1º andamento, Allegro comodo


2º andamento, Adagio


3º andamento, Allegro Brillante

08 dezembro 2010

A Lapa de Santa Margarida

O mar visto do interior da Lapa de Santa Margarida. Terá sido neste local que se deu a tragédia. (Foto de autor desconhecido)

A Lapa de Santa Margarida, na Serra da Arrábida, foi notícia durante os últimos dias pela pior razão. Nela, quatro pescadores desportivos foram arrastados para o mar por uma onda, só tendo sido possível salvar dois deles. Os outros dois morreram.

Certamente os quatro homens foram pescar para um penedo que fica situado em frente da boca da gruta, chamado Penedo do Duque, que apesar de ficar muito próximo de terra é de difícil acesso. O penedo tem este nome porque no séc. XVII o duque de Aveiro, que tinha o seu palácio em Vila Nogueira de Azeitão, ali costumava vir pescar. O penedo não costuma oferecer perigo de maior quando o mar está calmo, mas com tempestade de sudoeste ele pode ser fatal, como se viu.

A Lapa de Santa Margarida é uma das várias grutas existentes na Serra da Arrábida. É a única que eu conheço, porque as outras ou são praticamente inacessíveis ou ficam em zonas classificadas como reserva integral. A gruta fica junto ao mar e o acesso a ela é muito fácil, pois faz-se por umas escadas situadas ao lado de uma vivenda existente no ramal de estrada que conduz ao Portinho da Arrábida. Fica, portanto, entre o Portinho e Alpertuche.

Não se espere encontrar alguma coisa que valha a pena ver na Lapa de Santa Margarida, a não ser a sua abertura sobre o mar. A gruta, em si, é feia que se farta e não tem interesse absolutamente nenhum, a não ser, como curiosidade, a existência no seu interior de uma espécie de capela debaixo de um alpendre. A capela encontra-se num estado lastimável, como é lastimável o lixo e o aspeto de desleixo e de abandono que tudo aquilo apresenta.

No entanto, quem consultar o Guia de Portugal, mais concretamente o seu primeiro volume, datado de 1924, lerá que a Lapa de Santa Margarida era uma «verdadeira catedral marinha coberta de estalactites e estalagmites, que por vezes se unem em colunas maravilhosas, outras vezes eriçam o tecto de alvíssimas cristalizações». Um pouco mais à frente, o autor da obra (Raul Proença) cita o grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que descreveu assim esta gruta: «É uma vasta caverna de estalactites sob as claras águas do oceano; a sua grandiosidade excede toda a descrição... Constitui uma verdadeira igreja de rocha, com sua cúpula fantástica, tubos de órgão, colunas e altares».

A gente lê esta descrição, vai à gruta e abre a boca de pasmo até às orelhas. Não há lá absolutamente nada do que foi descrito em 1924! «Estalactites»? Onde estão? «Colunas maravilhosas»? Para onde foram? «Catedral marinha»? Que maldição lhe caiu em cima, que não a vemos? Pois é muito simples: a madição que reduziu a Lapa de Santa Margarida a um buraco nu e cheio de lixo chama-se portugueses. Portugueses, sim, que ao longo dos anos foram destruindo uma gruta que se dizia ser linda, foram partindo as suas estalactites e estalagmites, para levá-las para casa como "recordação" ou para vendê-las, e foram vandalizando a capela existente no seu interior. O resultado é o "lindo serviço" que lá está agora. Que vergonha!!!

No interior da Lapa de Santa Margarida. Que fizeram às estalactites e estalagmites? Quem partiu os azulejos que guarneciam a capela? (Foto: Ricardo Soares)