30 março 2012

Poesia Matemática

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo octogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até àquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.
Millôr Fernandes


Millôr Fernandes (1923-2012)

28 março 2012

Carmen Souza


Song for my Father, de Horace Silver, um tema clássico do jazz interpretado em crioulo por Carmen Souza, cantora portuguesa de ascendência cabo-verdiana



Afri Ka, por Carmen Souza



Dos Eternidade, por Carmen Souza

26 março 2012

Desemprego

Vulto parado na esquina
(Olhos no ar, indiferentes)
De costas para a vitrina
Cheia de jóias luzentes.

Parado naquela esquina todo o dia:
E os homens passam
Os homens que trabalham
Os homens passam...

Na memória embotada
(Os dias cada dia mais iguais)
Os frios apertos de mão
E os olhos frios
Detrás das secretárias:
«Não pode ser. Não pode ser
Por hoje...»

Na mesma esquina
De costas prà vitrina reluzente
A dor única que sente:
O sorriso mordido
O obrigado entre os dentes
E aquela mão
A sua
A agradecer...
Naquela esquina, a mesma...

Não:
Morrer não é remédio
Correr de porta em porta também não.
Apenas isto, talvez, para o seu tédio:
Acabar de sofrê-lo sem chorar
De costas para a vitrina
Naquela esquina
Onde se cruzam gentes que trabalham...

Mário António (1934-1989), poeta angolano


20 março 2012

Início da primavera


Três canções do ciclo Lieder im Freien zu singen ("Canções para Entoar ao Ar Livre"), de Felix Mendelssohn (1809-1847), interpretadas pelo Coro da Catedral de Regensburg, Alemanha, sob a direção de Georg Ratzinger: canção nº 2, Frühzeitiger Frühling ("Início da Primavera"); canção nº 4, Die Nachtigall ("O Rouxinol"); e canção nº 6, Jagdlied ("Canção da Caça").

16 março 2012

Mobiliário alentejano pintado à mão





Quando eu tinha cerca de dez anos de idade, passei um par de meses numa casa dos arredores de Sintra que nunca mais me saiu da memória. Exteriormente, a casa era uma habitação rústica tipicamente saloia, rodeada de frondosos pinheiros mansos que davam pinhões deliciosos. Interiormente, era total e unicamente recheada com peças de mobiliário alentejano pintadas à mão, em tudo idênticas às que se veem nestas fotografias.

Que linda que era aquela casa! Que alegria! O seu interior, então, era duma luminosidade e duma frescura campestre incomparáveis. As cores fortes da mobília, com as suas flores e as suas ramagens cuidadosamente pintadas sobre fundo branco, vermelho ou azul, contrastavam maravilhosamente com o branco imaculado das paredes caiadas. Como eu gostava daquela casa.

Mas tudo passa e tudo acaba. A casa já não existe. A aldeia pitoresca onde ela ficava também não, pois transformou-se num subúrbio industrial cheio de fábricas e de armazéns. As ruas da aldeia onde eu cheguei a conduzir uma carroça (era fácil de conduzir; a mula era muito obediente) cederam o lugar a avenidas retilíneas percorridas por automóveis e camiões. No local onde havia um quartel de bombeiros e um asilo para crianças órfãs e abandonadas, que era em tudo semelhante à Casa do Gaiato, nasceu uma fábrica da Tabaqueira. Uma lástima.

Que saudades que eu tenho da casa que era saloia por fora e alentejana por dentro!


Pintando à mão uma peça de mobília (Foto: Artesanato Alentejano)

13 março 2012

Uma tocata de Monteverdi


Primeiros acordes ("Tocata") da abertura da ópera L'Orfeo, de Claudio Monteverdi (batizado em 1567 e falecido em 1643), por Le Concert des Nations e La Capella Reial dirigidos por Jordi Savall

09 março 2012

«Água!»

Uma Berliet no Planalto dos Macondes, norte de Moçambique (Foto: Manuel Bastos)

-- Lembras-te, Tino, do Úcua? Andavas sempre à rasca com sede -- recordou o Vergas ao cair da noite.

Se se lembrava! Por essa sede sem fundo que o perseguia como a sombra, o pequeno soldado do Porto, embarcador e desembarcador de terra e mar, esteve quase a ser eliminado logo no início do curso de comandos, durante a semana da sede, sete dias de inferno no Norte de Angola, nos Dembos, com direito apenas a um cantil de água por dia.

Não fosse a prática da vida e teria perdido logo na primeira prova as esperanças de algum dia vir a ser um soldado de elite para se impor ao respeito da rufiagem das docas de Leixões, ou pior, teria rebentado como um peixe fora de água, os rins desfeitos a mijarem sangue, os pulmões secos que nem bacalhaus!

O Tino encontrou maneira de tirar do atrelado de água dos instrutores muito mais do que a ração considerada suficiente para a sobrevivência dum candidato a comando na fornalha do Úcua. Tanta que até deu para distribuir pelos camaradas de provação.

Nesta noite, na coluna da Volta ao Mundo, a palavra que corria na boca de todos os homens também era: «Água!» e, tal como no Úcua, essa zona de más recordações em Angola, o Tino tinha, de novo, inventado o modo de a obter. Estava com o Vergas debaixo do motor de uma Berliet, a retirar a água do radiador para o cantil através dum tubo ladrão.

-- Isto é a pior mixórdia que já bebi. Pior que o xarope dos cabarés das putas! -- afirmou o Vergas depois de engolir o líquido.

Os dois homens emparelhados nos comandos, o soldado e o cabo, o pequeno e o grande, o do Norte e o do Sul, unidos pelo acaso, regressaram ao seu lugar com a boca a arder com o sabor metálico a ferrugem, mas reconfortados. A ideia genial do Tino arrastou, como todas as promessas de salvação, uma multidão de seguidores. No seu rasto formou-se uma procissão de silhuetas recortadas a desfilar em direcção aos motores das viaturas, projectando as sombras de vultos negros dobrados, de cantil desrolhado na mão, sobre o fundo da noite clara. Formavam uma fila silenciosa junto aos radiadores, ansiosos, na esperança de que das tetas metálicas escorresse algum líquido.

Os contemplados bebiam sofregamente a água fervida de arrefecer o coração das máquinas e depois deitavam-se um pouco menos sequiosos, mas com um travo amargo de óleo na boca.

A primeira consequência do assalto aos radiadores surgiu logo de manhã quando, passados alguns poucos quilómetros, os motores das Berliets, dos Unimogs, dos camiões rafeiros sem marca definida, das Fox, começaram a fumegar devido ao aumento da temperatura.

Os condutores conheciam a causa do mal e mandaram o cabo mecânico ir explicá-la ao capitão.

-- Beberam a água dos radiadores? -- repetiu, incrédulo. Abanou a cabeça. -- Devia ter-me lembrado dessa...

Devia estar preparado para tudo. Conhecia os homens que constituíam a companhia e devia saber que deles podia esperar tudo. O melhor e o pior. Era essa certeza quanto à ocorrência do imprevisto que o fascinava no seu papel de chefe daquele grupo. Com a mesma facilidade e inconsciência que criavam as dificuldades também as aceitavam. Não lhe restava mais que esperar a chegada do helicóptero com a água que pedira para M e deu ordem para montarem segurança ao redor do estacionamento.

Dois Unimogs (Foto: a.leitão)

O Alouette aterrou depois do meio-dia trazendo um carregamento de água em jerricãs metálicos para ser distribuído por homens e viaturas.

Os homens beberam-na sofregamente e só depois acharam que sabia muito mal. Os mecânicos atestaram os radiadores das viaturas e a coluna recomeçou a deslocar-se.

A situação parecia ter voltado ao normal, com o lento avanço pela mata de vegetação de arbustos espinhosos e resistentes à seca e de árvores esguias, na direcção dum ponto no mapa que deixara de fazer sentido como futura zona de ataque à grande base Beira. Retardado o avanço da coluna dos comandos, esta dirigia-se apenas para o local no planalto dos Macondes onde se reuniria à dos pára-quedistas, que trazia a artilharia de acompanhamento, agora mais um peso inútil.

A coluna arrastava-se com a dolência dum réptil enjaulado e nada fazia prever que o ataque viesse de dentro de si mesma. Os primeiros sintomas surgiram quando Tino caiu da Berliet onde seguia, rebolando agarrado à barriga com uma cólica. Contraiu o corpo em vómitos sucessivos, de olhos cerrados, e a cara branca como a cal, foi tomando uma coloração esverdeada.

-- Que tem ele? -- perguntou o capitão ao enfermeiro.

-- Parece uma intoxicação.

Logo de seguida surgiram os mesmos sintomas noutros homens da coluna.

-- Descobre depressa donde vem esta merda de doença! -- mandou o capitão ao Cardoso com rispidez, como se este fosse o culpado.

O enfermeiro enfrentou-o por um brevíssimo momento e afastou-se para desrolhar o cantil de um dos atacados pelo estranho mal.

-- Cheira a gasóleo.

-- Os tipos de M mandaram água nos jerricãs do gasóleo e nem sequer os lavaram. Filhos da puta! -- exclamou antes de mandar o Transmissões enviar uma mensagem a pedir urgentemente um médico.

-- Urgente, meu capitão? -- perguntou o Brandão com o inexpressivo tom de voz de quem flutuava ausente noutra dimensão da vida.

-- Zero horas, seu maricas!

O capitão chegara ao seu ponto de ruptura. Agredia tudo e todos. Queria lá saber se o Brandão era maricas! Ou drogado. Fosse, ou não fosse, não era certamente culpado de os homens terem bebido a água dos radiadores e depois dos depósitos com gasóleo enviados pelo oficial da logística de M, um capitão que viera de soldado, sempre agarrado aos papéis e que nunca pusera o cu no mato! Um «chico» lateiro!

A coluna parava mais uma vez na floresta cinzenta, plana, chata, sem horizontes, como um veleiro num mar de azeite sem um sopro de vento. À espera dum médico vindo de helicóptero para avaliar a situação e evacuar os casos mais graves.

Excerto do livro Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (pseudónimo literário de Carlos Matos Gomes), editado pela Casa das Letras

08 março 2012

Soneto de Orfeu

São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida

E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Uma mulher que é feita de música
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento,
Tão cheia de pudor que vive nua.
Vinícius de Moraes


(Foto de autor desconhecido)

03 março 2012

Duas canções por Nina Simone


I Wish I Knew How It Feels To Be Free


Tomorrow Is My Turn