13 maio 2012

Recordações


Há dias, voltei a ouvir, pela primeira vez ao fim de quarenta anos, uma canção de Paul Simon chamada Mother and Child Reunion. Senti um intenso arrepio percorrer-me as costas, não por causa do conteúdo da letra da canção, mas por causa das recordações intensíssimas que ela fez aflorar ao meu espírito. Foi como se eu vivesse de novo a situação em que me encontrava no tempo em que esta canção estava nos tops e eu a ouvia repetidas vezes em disco e no rádio. Cumpria eu então o serviço militar obrigatório e aguardava em Santa Margarida a partida para a guerra colonial em Angola.

Na sequência desta primeira e vivíssima recordação, outras recordações me surgiram com grande vigor atrás dela, assim como algumas outras músicas que, independentemente do seu conteúdo, a elas ficaram indelevelmente associadas no meu espírito, porque então as ouvia frequentemente. Permita-me que narre algumas destas recordações, acompanhadas pelas músicas respetivas. Procurei colocar as músicas junto dos acontecimentos que me evocam.


O Charlatão, por Sérgio Godinho

No tempo da guerra colonial, para qualquer jovem português mobilizado para a guerra, os dias de espera pela hora da partida para África eram dias de angústia, evidentemente. Para mim, eles foram mais do que isso; foram dias de uma ansiedade tal que chegou a roçar o desespero, em resultado de um acontecimento inesperado. Por vezes acontecem situações na nossa vida que nos levam a dizer: «Isto só a mim!» «Que mal é que eu fiz para merecer isto?» Foi o que me aconteceu então.

O batalhão de caçadores a que pertenci e no qual fui mobilizado para Angola no cumprimento do serviço militar obrigatório, como alferes miliciano atirador de Infantaria, foi um batalhão constituído por militares portugueses ("metropolitanos", como se dizia naquele tempo) e por militares angolanos ("de incorporação da província", como então se dizia também). Portanto, o batalhão começou por se formar cá em Portugal, só com os elementos portugueses, e completou-se mais tarde em Angola, com os elementos angolanos.

No início da constituição do batalhão cá em Portugal, eu não conhecia nenhum dos soldados que então foram nomeados para fazer parte da minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia (ainda não éramos alferes nesse momento) conheciam aqueles homens, porque já lhes tinham dado instrução militar (especialidade). Conheciam-lhes os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.

No momento inicial de distribuir os homens pelos quatro grupos de combate, o comandante da companhia mandou fazer uma formatura em linha e ordenou:

— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.

Eu objetei, tentando dizer que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente aos outros aspirantes. O comandante da companhia não me deixou falar, interrompendo-me e insistindo repetidamente comigo:

— Escolhe. Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores...

Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros para poder escolher, mais ele me interrompia, gritando:

— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!

A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me este:

— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.

Já só me limitei a responder:

— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.

Olhei para os soldados que me estavam destinados e senti-me desfalecer. Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão...»

Com efeito, o aspeto dos meus novos subordinados portugueses era arrepiante. Não admirava que tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns daqueles soldados pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como soldados numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os três excelentes furriéis milicianos que comandei (então ainda só tinham o posto de primeiros-cabos milicianos) pareciam tão aterrados como eu.

«Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.


Casa Comigo Marta, por José Mário Branco

Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.

Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o meu batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o meu batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito, nem coisa nenhuma. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.

Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma coisa até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, havia umas quantas palestras "patrióticas" feitas pelo comandante, muitas e longas pausas e muitas e longas horas de ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!

Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por isso, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.

Descobri por acaso uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferência dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.

Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.


Mother And Child Reunion, por Paul Simon

Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar a semana de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra (as "normas" ou qualquer coisa assim parecida; já não me lembro do nome da licença), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço dispendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.

Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aquela semana de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. Alguns estavam mesmo irreconhecíveis. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»


Cantigas do Maio, por José Afonso

Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias de caçadores pertencentes ao batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução, que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas foi uma resolução muito séria e muito decidida, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juíz dos restantes. Uns perante os outros, tomámos então a seguinte resolução:

«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentrar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites éticos que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar».

Quando embarquei no avião da Força Aérea que me iria levar para Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.


Águas de Março, por Elis Regina

À chegada ao quartel do Grafanil, em Luanda, fomos informados de que a companhia que íamos render tinha a sua partida marcada para muito brevemente e, por isso, a nossa Instrução de Aperfeiçoamento Operacional teria que durar apenas uma semana. «Isto começa mal», pensei.

No dia seguinte, de manhã, chegaram os camaradas angolanos que iriam fazer parte da nossa companhia, vindos diretamente da cidade do Lubango, então chamada Sá da Bandeira.

«Estou salvo», pensei, dando um grande suspiro de alívio, assim que vi todos aqueles negros e mestiços de ar desempoeirado, porte digno e olhar inteligente. «Estou salvo. Quaisquer que sejam os que vierem a ficar comigo, serão bons com certeza».

Como já tinha acontecido em Portugal, o capitão mandou os angolanos formar em linha e ordenou:

— Os alferes escolham os homens que querem.

— Eu não escolho — repliquei de modo displicente.

— Estás doido?! — gritou o capitão. — Tu já tens os piores dos brancos e agora queres ficar com os piores dos africanos? És suicida ou quê? Escolhe! É uma ordem!

— Não escolho — teimei, pensando: «Só agora é que ele se preocupa? Agora é tarde demais. Assim como consegui resolver o problema de uns, também hei de resolver o dos outros, que nem problema parece ser. Agora é que não escolho mesmo». Acrescentei:

— Isto não é maneira de distribuir pessoas. Eles são seres humanos, não são animais. Não se devem escolher homens como quem escolhe cabeças de gado.

Enquanto o capitão e eu discutíamos, os outros alferes iam fazendo as suas escolhas. No fim, fiquei com os angolanos que restaram. «Nada mau», pensei ao vê-los. «Não me parecem piores do que os outros».

Foi imediatamente bom o relacionamento que se estabeleceu entre angolanos e portugueses. O enorme companheirismo dos angolanos logo derrubou barreiras e dissipou desconfianças. Ao fim de um par de horas, já parecia que eram todos amigos de longa data. É claro que o facto de todos eles estarem nas mesmas difíceis circunstâncias também desempenhou um papel muito importante na sua aproximação.

Ao fim do dia, quando ficámos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, no Lubango, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo sido colocados a mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa...

Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar. A forte impressão que a visão do mar lhes causou foi depois motivo para muitas horas de conversa.

O dia seguinte era para ser o dia da nossa partida para o Úcua, mesmo ao pé da zona de guerra, onde iríamos receber a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional. Era para ser, mas não foi. Partimos, sim, mas para a própria guerra...

— Vamos render imediatamente a companhia que está à nossa espera — comunicou-nos o capitão. — Não vamos receber IAO nenhuma, porque não há tempo para isso. Quem estiver preparado, está; quem não estiver, estivesse.

Avançámos para o norte, com o coração aos saltos. «Olha se eu não tivesse dado aquela instrução toda em Santa Margarida...», pensei. «Agora estaria em maus lençóis».


Have You Ever Seen The Rain?, por Creedence Clearwater Revival

Ao longo de toda a comissão militar em Angola, que durou dois anos e dois meses, todos os meus subordinados — furriéis, cabos e soldados; portugueses e angolanos sem distinção — comportaram-se de uma forma que ultrapassou tudo o que de melhor eu poderia esperar. Eles foram verdadeiramente insuperáveis no esforço, na generosidade e na valentia.

Dou apenas um pequeno exemplo da sua espantosa coragem. No decurso de uma operação militar, eles avançaram, sem vacilar, por um trilho minado e armadilhado, sabendo antecipadamente que o trilho estava minado! Ainda por cima, numa operação anterior, já um seu camarada tinha ficado sem uma perna por ter pisado uma mina! É evidente que eles tomaram todas as cautelas possíveis e transpiraram litros de suores frios. Avançaram lenta e cuidadosamente pelo trilho, mas avançaram sem hesitar.

Por outro lado, nem uma só vez eles se comportaram como cães de guerra espalhando a morte à sua volta, como o capitão gostaria que eles fizessem. O próprio lema da companhia, que o capitão escolheu, era um incitamento repugnante: «A cada um a sua própria morte»! De maneira nenhuma os outros três alferes e eu próprio estávamos dispostos a permitir um tão odioso comportamento. Felizmente nunca foi precisa qualquer intervenção nossa a este respeito. O nosso pessoal nunca se deixou desumanizar, apesar de algumas situações extremas que se viveram. Nunca, em tempo algum, os nossos homens deixaram de ser sensíveis à morte e ao sofrimento humano.


Tata Nkento, por Alberto Teta Lando

Sinto um orgulho enorme nos subordinados que me coube comandar. Eles foram, verdadeiramente, os melhores. Isto mesmo foi publicamente reconhecido pelos outros camaradas que com eles comeram o pão que o diabo amassou no inferno verde do norte de Angola.

— Só ao lado deles é que nos sentimos seguros — disseram, textualmente, os outros a seu respeito. — São os únicos em quem temos confiança.

Isto não aconteceu por acaso e a explicação é simples. Quando, no início, foram rejeitados pelos outros alferes, os meus cabos e soldados sentiram-se feridos na sua dignidade pessoal. Este facto levou-os a procurar provar aos outros e sobretudo a si próprios que tinham tanto valor como eles. Superaram-se e conquistaram com sangue, suor e lágrimas o respeito que lhes fora negado. Posso, por isso, afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.

Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram as pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo. Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração: Domingos Amado Neto, Silva Alfredo dos Santos, Domingos Cangúia, Diogo Manuel, Ramiro Elias da Silva, Domingos Jonas, Mateus Tchinguri, Jonas Vitorino, Lucas Quinta, Henrique Luneva, Raimundo Nunulo, Domingos Dala, Fortunato Francisco João Diogo e Simão João Leitão Cavaleiro. Nunca os esquecerei.

Só lamento não ter conseguido ser um alferes à altura do que todos eles — angolanos e portugueses — mereciam.


Muimbu Ua Sabalu, por Barceló de Carvalho (Bonga)

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