16 setembro 2012

Uma lição

(Foto: Joaquim Costa)

O caso que vou contar passou-se numa companhia do Exército Português colocada no norte de Angola durante a Guerra Colonial, companhia esta que era composta por militares portugueses, então chamados metropolitanos, e por militares angolanos, que eram ditos de incorporação da província. Era, portanto, uma companhia constituída por brancos, mestiços e negros.

O comandante dessa companhia era um capitão miliciano cujo comportamento era racista. Concretamente, quando algum dos seus subordinados brancos cometia o que ele considerava ser uma falta, lavrava a respetiva punição de acordo com as normas oficiais. Se o militar a castigar fosse de cor, além de receber a punição oficial referida, era chamado ao gabinete do comandante de companhia, onde este, com uma vergasta numa mão e uma pistola na outra (para que o agredido não se pudesse defender), vergastava o africano até que este necessitasse de receber tratamento na enfermaria da companhia.

De cada vez que aconteciam estas agressões por parte do capitão sobre os soldados e primeiros-cabos negros e mestiços, mais crescia o sentimento de injustiça e de revolta entre estes. Até que um dia...

De madrugada, ainda antes de o dia começar a nascer, uns vultos silenciosos, devidamente fardados e armados, saíram das casernas e, em fila indiana, encaminharam-se para a porta de armas daquele quartel do mato. O soldado que estava de sentinela à porta de armas, que era branco, abriu-lhes a passagem e deixou-os sair, pensando que se tratava de uma coluna que partia para uma operação militar. À medida que os vultos que saíam iam passando por si, o soldado de sentinela ia ficando cada vez mais intrigado, porque só via militares africanos na coluna; não havia um só cabo ou um só soldado branco, como não havia um só alferes ou um só furriel. O soldado de sentinela acabou por chamar o furriel que estava de serviço e perguntou-lhe se estava programada alguma operação só com africanos.

— Não, que eu saiba, não. Nunca se fez uma operação assim — respondeu o furriel. — Porquê?

O soldado contou-lhe o que tinha acabado de testemunhar. Alarmado, o furriel foi acordar o capitão, contando-lhe o sucedido. O capitão deu um salto da cama, exclamando:

— O quê?! Não é possível! Querem ver que eles desertaram e se passaram para a UPA [FNLA]?

Saiu do quarto a correr e foi às casernas ver quem lá estava. Apenas viu soldados e cabos brancos. Nem um só angolano, negro ou mestiço, tinha ficado.

— Desertaram! Está visto que desertaram! E levaram armas, munições e tudo! E agora? O que vai ser de mim? Estou desgraçado! O que vai ser de mim quando se souber que eles se passaram todos para a UPA, com armas e munições? Como é que eu vou justificar uma tal deserção em massa de elementos da minha companhia?!

Mandou imediatamente que se formassem patrulhas que pesquisassem as redondezas, a fim de se saber que destino levaram os africanos. As patrulhas regressaram de mãos vazias, comunicando ao capitão que o rasto deles penetrava numa mata próxima e desaparecia no seu interior. Não era possível saber para onde é que eles tinham ido. Mais do que nunca o capitão se convenceu de que os seus subordinados angolanos tinham desertado.

— Estou desgraçado! O que vai ser de mim? Tenho a minha vida arruinada! — dizia o capitão, desesperado.

As horas foram-se passando sem que surgisse qualquer outra notícia sobre os africanos. Por volta do meio-dia, o capitão resolveu comunicar via rádio com a sede do batalhão e contar ao respetivo comandante o que se passava. O tenente-coronel ficou tão assustado como ele.

— Isto é o fim da minha carreira militar! O nosso brigadeiro até me mata quando souber! Ó Fulano, tens mesmo a certeza de que os gajos desertaram? — perguntou o tenente-coronel ao capitão.

— Tenho, meu comandante — respondeu o capitão. — Passou-se isto assim e assim; portanto, só podem ter desertado! E agora, o que vai ser de nós?!

— Ó Fulano, tem calma, tem calma. Pode ser que ainda aconteça algum milagre e eles voltem. Vamos esperar até logo à noite, antes de comunicarmos o caso ao nosso brigadeiro. Pode ser que eles entretanto apareçam. Se não aparecerem, então não teremos outro remédio senão comunicar o sucedido para Santa Eulália, e seja o que Deus quiser. O nosso brigadeiro, mais tarde ou mais cedo, vai ter que saber. Isto é demasiado grave para que ele não fique a par do que se passou. E reza, reza para que tudo acabe bem. Esperemos até logo à noite, a ver o que é que acontece.

O dia passou-se sem que houvesse qualquer sinal dos africanos. Quando começou a anoitecer, uns vultos emergiram da mata próxima e, silenciosamente e em fila indiana, dirigiram-se para o quartel. Eram os africanos que voltavam. Passaram a porta de armas e encaminharam-se para as casernas, de onde não saíram para jantar. Passaram o dia inteiro sem comer. No dia seguinte, retomaram a sua atividade normal, como se nada tivesse acontecido. O capitão desde esse dia nunca mais levantou sequer um dedo contra um negro ou um mestiço.

Como facilmente se calcula, o capitão não descansou enquanto não descobriu quem foi o líder do movimento dos africanos. Alguém deve ter tomado a iniciativa, decidido o que fazer e deve ter orientado os seus camaradas durante a execução. O capitão acabou por descobrir o líder: foi um certo primeiro-cabo angolano.

O capitão apressou-se a puni-lo, aplicando-lhe a pena máxima que lhe era possível aplicar. O texto da punição, a cujo teor tive acesso, dizia que o referido primeiro-cabo era castigado «por ter sido encontrado a dormir no posto de sentinela»! Numa zona considerada de guerra, como era aquela em que eles se encontravam, esta era uma falta tida como gravíssima, passível de uma sanção muito pesada. Por isso é que o capitão a invocou, a fim de que o punido acabasse por receber uma pena bem grande.

O comandante do batalhão, por seu lado, quando recebeu o documento da punição aplicada pelo capitão, agravou a pena, aplicando também o máximo da sua competência: um mês de prisão simples.

Em seguida, o processo subiu até ao brigadeiro comandante da Área Militar Nº 1 (AM1), de que o batalhão dependia, o qual não procedeu a qualquer agravamento da pena, para grande surpresa do tenente-coronel e do capitão. O primeiro-cabo angolano acabou, portanto, por cumprir um mês de prisão simples, o que também implicou a sua despromoção. Foi despromovido para soldado raso e, depois de ter cumprido a pena, foi transferido para outra companhia.

Foi transferido para a minha companhia, onde eu próprio prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano. Eu já estava a par do que tinha acontecido. Por isso, no exato momento em que soube que o antigo primeiro-cabo vinha para a minha companhia, manifestei ao meu capitão o desejo de que ele ficasse no meu pelotão. Depois de ouvir a opinião dos outros alferes, o capitão anuiu. Portanto e por minha vontade, o líder da contestação dos angolanos da outra companhia acabou por ficar comigo até ao fim do nosso serviço militar.

Posso garantir que nunca, nem por um só momento, me arrependi de ter querido ficar com ele. Foi um soldado em quem sempre depositei a maior confiança (tal como nos restantes, é importante que se diga) e que nunca traiu esta minha confiança, fosse em que momento fosse. Sinto-me profundamente honrado por ter podido contar com um tal homem a meu lado.

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