12 maio 2014

Comunicação por assobios

Em primeiro plano, uma povoação da ilha de La Gomera; em último plano, o vulcão Teide, da ilha de Tenerife (Foto: Getty)


As crianças em idade escolar da ilha de La Gomera, no arquipélago espanhol das Canárias, são umas felizardas. Não só podem assobiar nas aulas, mas também são ensinadas a assobiar nas aulas!

Com uma população de cerca de 22 mil habitantes, a ilha de La Gomera é a segunda ilha mais pequena, das sete que compõem as Canárias. Tem uma forma aproximadamente circular, com um diâmetro de cerca de 22 km, e é cheia de picos e ravinas.

O acidentado do terreno de La Gomera dificulta a deslocação das pessoas. Com frequência é preciso comunicar com alguém que está num outro monte ou no fundo de um vale. As pessoas podem falar gritando, é claro, mas o esforço exigido para que a voz vença uma distância considerável torna penosa a comunicação gritada. O assobio, pelo contrário, quando for bem colocado e bem modulado, consegue atingir distâncias muito maiores e com muito menor esforço.

Antes da chegada dos espanhóis, as ilhas Canárias já eram habitadas por um povo oriundo do Norte de África e aparentado aos berberes: os guanches. Presentemente, já não existem guanches nas Canárias, isto é, os atuais habitantes do arquipélago são o resultado do cruzamento dos antigos guanches com imigrantes vindos da Espanha continental. Mas algumas características da cultura guanche conservaram-se até hoje. A comunicação por assobios de La Gomera, herdada dos guanches, é uma delas.

O silbo gomero, como o assobio de La Gomera é chamado localmente, não é o único que existe no mundo. Há também comunicação por assobios em comunidades da Grécia, Turquia, México e em algumas regiões de África. Nas próprias Canárias, também existem vestígios da existência no passado desta forma de comunicação nas ilhas de El Hierro e de Tenerife, nas quais ela está agora praticamente extinta. Mesmo em La Gomera, as pessoas não passam o tempo a assobiar umas para as outras. De maneira nenhuma. O silbo gomero quase só se usa como atração turística. Mas, na década de 90 do século passado, o governo regional das Canárias determinou que esta forma de comunicação fosse ensinada nas escolas da ilha e em 2009 a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) classificou o silbo gomero como Património Imaterial da Humanidade.

O silbo gomero procura imitar, tanto quanto possível, a entoação da língua espanhola e até a pronúncia de algumas vogais e consoantes, mas é evidente que ele não consegue reproduzir com exatidão a língua falada. Há bastante lugar para a ambiguidade. No entanto, as pessoas conseguem perceber os assobios, tirando o sentido do que lhes é "dito" em função do contexto. A comunicação realiza-se.



Vídeo de apresentação, em espanhol, do silbo gomero


Demonstração, na qual o texto que passa em rodapé é "traduzido" para silbo gomero

Comentários: 7

Blogger Valdemar Silva escreveu...

Interessante estudo antropológico de comunicação do Homem.
O registo no segundo vídeo é muito mais que um simples aviso, já surge uma explicação assobiada em variados tons que se assemelham a frases com várias palavras numa informação.

Valdemar Queiroz

17 maio, 2019 12:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado pelo seu comentário, prezado Valdemar Queiroz. Aprendi nos meus tempos do liceu que «o homem é um animal gregário». Assim é. O homem (e a mulher, claro) é tão gregário que, mesmo quando está afastado dos seus semelhantes, procura comunicar com eles. Ao longo dos tempos tem recorrido aos mais diversos meios para o conseguir: por assobios, sinais de fumo, tambores, pombos correios, etc., etc., até à internet dos nossos dias. Talvez se devesse definir o homem, não tanto como sendo um animal gregário, mas antes como sendo um animal comunicador.

Agora me lembrei de um outro animal que também comunica por assobios (ou, pelo menos, por algo equivalente aos assobios), que é a baleia. Sendo um animal tão corpulento, seria de esperar que a baleia comunicasse por rugidos extremamente graves, tão graves que nem o ouvido humano seria capaz de os captar (infrassons). No entanto, a baleia emite sons que até certo ponto podem ser equiparados a assobios, com a finalidade de poder comunicar com os seus semelhantes situados a centenas ou mesmo a milhares de quilómetros de distância, através das imensas massas de água que constituem os oceanos.

Volte sempre que quiser.

18 maio, 2019 02:04  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

A propósito do canto das aves, num Encontro sobre Ecologia realizado no Algarve, uns ornitólogos espanhóis, depois de estudo de vários anos, explicaram ter chegado a uma extraordinária conclusão sobre o canto de aves sedentárias e da mesma espécie.
Concluíram que aves da mesma espécie a viverem em regiões diferentes o seu canto também tem tonalidades diferentes, seria como que um cantar trocando os vês pelos bês e noutro local ter um forte sotaque alentejano.
Não consegui apurar quais os factores de influência deste interessante fenómeno.

Cumprimentos
Valdemar Queiroz

25 maio, 2019 23:56  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

É realmente muito curiosa essa existência de "dialetos" entre as aves da mesma espécie, mas residentes em regiões diferentes, caro Valdemar Queiroz.

Há também o caso das aves que, por qualquer razão, são criadas por outras aves de uma espécie diferente, as quais aprendem o canto dos seus "pais adotivos", em vez de ficarem a cantar a música da sua própria espécie (salvaguardadas as diferenças anatómicas, tais como corpulência, configuração das cordas vocais, etc.). É claro que isto não se pode aplicar aos cucos, que nascem sempre em ninhos alheios, mas só sabem dizer cu-cu, cu-cu, cu-cu. Decididamente os cucos não têm queda para a música...

Um abraço

26 maio, 2019 15:58  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

A propósito dos guanches, é interessante saber que eles foram, também, povoadores da Ilha da Madeira, mas como escravos.
Sabe-se que chegaram à Madeira, muitos escravos berberes-guanches, para o cultivo da cana-de-açúcar, oriundos do arquipélago das Canárias.
Julga-se que os topónimos Lugar do Canário, Pico Canário e Vereda dos Canários estarão relacionados com esse facto, embora exista uma abundante colónia de canários (aves).

Um abraço
Valdemar Queiroz

08 junho, 2019 17:34  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

É curioso como o arquipélago da Madeira estava desabitado quando foi descoberto, enquanto as Canárias, tão próximas, estavam povoadas por populações vindas do norte de África, os guanches. Por que razão essas populações não terão povoado a Madeira também? Eis uma pergunta para a qual eu não tenho resposta. Tanto quanto sei, a ilha da Madeira (mas não a de Porto Santo) é consideravelmente mais fértil do que as Canárias. Foi por causa das densas florestas que cobriam a ilha que lhe puseram o nome de Madeira.

Um abraço

10 junho, 2019 01:04  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

Curiosidade interessante.
Por em dias claros os montes de Tenerife serem avistados de terra (África), julga-se os primeiros habitantes das Canárias teriam sido prisioneiros berberes abandonados por Púnicos-Fenícios.
Talvez, por Madeira e Porto Santo ficarem mais distantes e a norte, nunca teriam sido avistadas ou os ventos e correntes dominantes não permitirem navegar para esses lados.
Mas, são minhas estas conjecturas, não conheço nenhuma explicação para esse facto.

Na 'História dos Descobrimentos Portugueses', de Jaime Cortesão, não é explicado/sugerido
quem seriam os 'selvagens nus de cabelos compridos' quando lá chegaram os portugueses, em 1341.

Abraço
Valdemar Queiroz

10 junho, 2019 17:05  

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