15 março 2015

Um adeus português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill, in No Reino da Dinamarca (1958)


Alexandre O'Neill (1924-1986), poeta português

Comentários: 2

Blogger NAMIBIANO FERREIRA escreveu...

Um belo poema. Na minha magra opinião, à partida poema de amor. No entanto esconde uma outra realidade para fugir às garras asfixiantes da censura. Os olhos altamente perigosos....

abraço

15 março, 2015 12:56  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

É um poema de amor, sem dúvida nenhuma, mas também de crítica política, em que O'Neill denuncia a asfixiante condição a que se encontra reduzido. Alexandre O'Neill terá escrito este poema em jeito de despedida de uma sua amada francesa que regressou ao seu país, e que ele não pôde acompanhar por ter sido proibido pela PIDE de sair de Portugal. É um poema do tempo de Salazar, portanto, mas podia ter sido escrito hoje, embora agora não exista a PIDE. Não existe a PIDE, mas existe um governo que se tem encarniçado em destruir todos os anseios, sonhos, ideais e conquistas sociais que pudessem ainda restar da Revolução dos Cravos, e que tudo tem feito (e conseguido) para fazer-nos voltar à apagada e vil tristeza de que já falava Camões.

Durante muitos anos eu achava que não gostava da poesia de O'Neill. Alguns dos seus poemas começaram a ser musicados e cantados em canções de gosto duvidoso, e então eu tomei-o "de ponta". Como eu estava errado! A poesia do O'Neill é uma poesia magnífica, recheada de jogos de palavras e de trocadilhos, plena de ironia (mesmo de sarcasmo, por vezes) e ao mesmo tempo é tremendamente humana. Agora, considero-o um dos maiores poetas portugueses do séc. XX.

16 março, 2015 00:58  

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