26 maio 2015

Minha mãe que não tenho

Minha mãe que não tenho   meu lençol
de linho   de carinho   de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.

Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço   ai mãe   ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que Egipto vieste?   De que Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe   minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho   minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila   virgem   buda   corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho   inventa-me primeiro:
constrói a casa   a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo   que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos (1937-1984)



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