29 maio 2016

Os sapatos do arcebispo

Sapato litúrgico do arcebispo de Braga D. Rodrigo de Moura Teles. Séc. XVIII. Tesouro-Museu da Sé de Braga (Foto: Manuel Correia)


Quem visitar o Tesouro-Museu da Sé de Braga, encontrará em exposição um conjunto de objetos de arte sacra, que são idênticos aos que se encontram em qualquer outro tesouro de qualquer outra sé: cálices, turíbulos, custódias, crucifixos, imagens, telas, paramentos, relicários, oratórios, retábulos, etc. Mesmo assim, o tesouro da Sé de Braga merece ser visitado, porque tem um espólio valiosíssimo, tanto do ponto de vista material como artístico, a atestar a importância e a antiguidade da respetiva arquidiocese. Em Portugal, talvez só o tesouro da Sé de Lisboa se lhe pode comparar, ou nem sequer esse.

Há no tesouro da Sé de Braga, porém, um par de objetos que não se costuma encontrar em outros tesouros de outras sés: um par de sapatos litúrgicos, que são tão pequeninos, tão pequeninos, que diríamos serem de criança. Mas não são sapatos de criança, como se pode depreender dos tacões altos que possuem. Na verdade, são sapatos que pertenceram a um arcebispo. Este arcebispo foi D. Rodrigo de Moura Teles, que era tão pequeno que não devia medir mais de 1,30 m de altura e que antes de presidir à arquidiocese de Braga, entre 1704 e 1728, foi reitor da Universidade de Coimbra e bispo da Guarda. Os tacões dos sapatos ter-lhe-ão servido para poder chegar ao altar quando celebrasse missa.


Retrato de D. Rodrigo de Moura Teles (1644–1728), arcebispo de Braga. Hospital de S. Marcos, Braga (Foto: Joseolgon)


Apesar de ser muito pequeno, D. Rodrigo de Moura Teles foi um dos arcebispos que mais marcaram a cidade de Braga, a avaliar pela quantidade de fachadas de edifícios religiosos e civis em que figura o seu brasão. Talvez só o arcebispo D. Diogo de Sousa, que viveu no séc. XVI, é que deixou mais marcas do que ele. Braga não seria Braga se estes dois homens não tivessem existido. Seria uma outra cidade, provavelmente menos interessante e seguramente com um outro caráter.

Que edifícios deixou D. Rodrigo de Moura Teles à posteridade? A igreja de Santa Maria Madalena, na Falperra, por exemplo, foi um deles. Para mim, esta igreja é o mais belo dos três santuários que rodeiam a cidade de Braga, sendo os outros dois o Bom Jesus do Monte e o Sameiro.

Eu tenho a tendência para desprezar o estilo barroco tardio, também chamado rococó, como sendo uma manifestação decadente do barroco, em que se perdeu todo o sentido da harmonia e do equilíbrio. Mas quando olho para a igreja da Falperra, que é precisamente em estilo rococó, tenho que engolir as minhas palavras. É um templo lindíssimo. Apesar de toda a excessiva exuberância decorativa que apresenta, esta igreja é a prova de que não há bons e maus estilos; o que há é bons e maus arquitetos. E o arquiteto que concebeu a igreja da Falperra foi, sem dúvida nenhuma, um dos melhores do seu tempo. Chamava-se ele André Soares. Não por acaso, foi ele também o arquiteto que desenhou o Palácio do Raio, outro magnífico exemplo do estilo rococó em Braga.


Igreja de Santa Maria Madalena, Serra da Falperra, Braga (Foto: snitrom Jose Goncalves)


Também o santuário do Bom Jesus do Monte tem a marca indelével de D. Rodrigo de Moura Teles, uma marca, aliás, que se vê de muito longe. Quando D. Rodrigo chegou a Braga, já existia em Tenões um templo relativamente modesto dedicado ao Bom Jesus. Mas foi D. Rodrigo que mandou transformar este templo num santuário grandioso, incluindo a sua escadaria monumental, que serviu de exemplo a outras escadarias, como a da Senhora dos Remédios, em Lamego.

A igreja propriamente dita, que agora se vê no alto da escadaria do santuário do Bom Jesus, é que já não se deve a D. Rodrigo de Moura Teles. Data da transição do séc. XVIII para o XIX e é em estilo neoclássico. O seu arquiteto foi Carlos Amarante, por encomenda do arcebispo D. Gaspar de Bragança. Este outro arcebispo foi um dos chamados "meninos da Palhavã", fruto dos amores do rei D. João V com a madre Paula, superiora do convento de Odivelas. O palácio da Palhavã, em Lisboa, onde está atualmente instalada a embaixada de Espanha, foi mandado construir por D. João V para alojar estes seus filhos ilegítimos. Mas isto já é outro assunto.


Escadaria do santuário do Bom Jesus do Monte, Tenões, Braga (Foto: Botafogo)


De entre as várias estátuas que se encontram espalhadas pelo santuário do Bom Jesus de Braga, conta-se uma estátua equestre que representa S. Longuinhos. Esta estátua, que data dos inícios do séc. XIX e é da autoria do escultor Pedro José Luís, apresenta a rara característica de ser toda de pedra, neste caso de granito. Habitualmente, as estátuas equestres não são de pedra, mas sim de bronze ou outro material que não a pedra. A esta estátua de S. Longuinhos existe associada uma ingénua crença popular: qualquer moça solteira que der três voltas a pé coxinho em redor desta estátua, casará no prazo de um ano!


Estátua de São Longuinho ou Longuinhos, santuário do Bom Jesus do Monte, Tenões, Braga. Autoria do escultor Pedro José Luís. Ano de 1819. É a única estátua equestre existente em Portugal feita de pedra e uma das únicas do mundo (Foto: Joseolgon)

27 maio 2016

Santa Bárbara


Santa Bárbara, pelo Coro Mineiro de Turón, das Astúrias, Espanha

Santa Bárbara é a santa protetora dos mineiros. Turón é uma localidade mineira situada nas Astúrias, no norte de Espanha, de cujo subsolo se extrai hulha, que é uma forma de carvão. Da hulha liberta-se espontaneamente metano, que é um gás combustível que, misturado com o oxigénio do ar, dá origem ao chamado grisu. Esta mistura de metano e oxigénio chamada grisu é explosiva em ambientes fechados e limitados, como os das minas. A mais insignificante faísca pode desencadear uma explosão de consequências trágicas, com muitos mineiros mortos e feridos, derrocadas de galerias, etc. Na China, onde a segurança no trabalho deixa muito a desejar, são frequentes as explosões de grisu nas minas de hulha, com um número de mortos e de feridos impressionante e que não pára de aumentar.

Em Portugal, as minas de carvão que existiram em São Pedro da Cova, no concelho de Gondomar, e no Pejão, no concelho de Castelo de Paiva, não eram de hulha, mas sim de antracite, que é uma outra forma de carvão. A antracite, que é carbono quase puro, não liberta metano. Nestas minas, portanto, não havia o perigo de explosões de grisu.

25 maio 2016

Enxames de peixes

Uma chana ou anhara no Parque Nacional da Cameia, província do Moxico, Angola (Foto:carlosloureiro520)

PEIXE DO CAPIM

Os preconceitos alimentares de quem vive no mato longe dos grandes rios ou lagos, marcam a diferença em relação à atitude das populações ribeirinhas que pescam e comem peixe.

A pesca em Angola, tal como hoje se pratica, regista muita influência dos métodos introduzidos pelos portugueses, mas nem sempre foi assim. De qualquer modo, não é da moderna pesca artesanal nem da indústria da pesca que vou ocupar-me, porque a minha ideia é recordar aos mais jovens antigos métodos da pesca tradicional e velhas estórias de pescarias em épocas passadas.

O litoral, a sul, era quase desabitado e a pesca no mar fazia-se especialmente no norte do país, onde os habitantes construíam paliçadas nas encostas da praia, utilizando paus de bordão e folhas de palmeira, para beneficiarem do movimento de vai-vem das marés. Na maré vazante, os peixes que penetram no cerco, devido à subida das águas, não podem escapar-se, retidos na precária rede e podem ser agarrados à mão.

Sistema similar ainda se utiliza hoje nos grandes rios do país, especialmente no Cuanza, Cuango, Cubango, Cassai, etc. Este tipo de actividade pesqueira é praticada normalmente pelos homens. São eles que constroem as represas com paus espetados no leito do rio e contra os quais colocam as armadilhas, cestas cónicas de vime, que aprisionam os peixes que circulam ao sabor da corrente. Diferente é a pesca lacustre, estacional e praticada essencialmente por mulheres, que fazem da pesca da «tukeya» uma festa. A «tukeya» é um peixe minúsculo, peixe de chana mais pequeno do que os chamados «joaquinzinhos» e que se encontra na região da Cameia, no leste do país, onde, com as chuvas, se formam grandes lagos temporários e de pouca profundidade.

As mulheres juntam-se em ranchos e metem-se nas águas das lagoas, praticando grandes pescarias colectivas, enquanto cantam e dançam. Trata-se de uma actividade secular, embora as referências escritas sobre esta prática tradicional datem apenas da primeira metade do século XX. As primeiras anotações escritas sobre a «tukeia» pertencem a Dom António d’Almeida, com apóstrofe, homem de letras e linhagem, que foi goverrnador do Bié e Luchazes, vasto território que abrangia as superfícies das actuais províncias do Bié, Moxico e Cuando-Cubango.

Amo e senhor desse domínio imenso e ignoto, D. António quis conhecê-lo palmo a palmo. Investigador, meteu-se pelo mato e pelas anharas que calcorreou. A pé, em tipoia, a boi-cavalo, em carro boer, automóvel ou comboio, que já avançava pelas chanas do leste, Dom António viajou muito e conheceu bem a região que devia administrar mas não administrou. Quando somou suficiente conhecimento sobre o território que ia governar, já se tinha esgotado o tempo da sua comissão como governador. Desse tempo e dessas viagens ficaram os seus escritos e entre eles anotações da sua passagem pelas chanas da Cameia, lugar de areais e vegetação de meia altura. Nesses relatos refere-se, reticente, ao tema fascinante da «tukeya». Dom António escrevia com deleite e era minucioso na descrição de tudo o que observava, mas nem sempre investigava a fundo.

Seria meia manhã quando notou, ao longe, quase sobre a linha do horizonte, a existência de um estranho manto de prata que reflectia a luz do sol. Era um manto que cobria as bissapas e o capim, numa vasta área. Intrigado com o fenómeno, foi perguntando aos sipaios e logo aos pisteiros, o que era aquilo, luminoso, lá ao longe. Foi aí que o governador ouviu falar pela primeira vez da «tukeya», o peixe da anhara. À medida que a caravana avançava, o manto branco desdobrava-se mais nitidamente no que pareciam peixinhos prateados, incrivelmente empoleirados nas bissapas e no capim.

O cheiro que exalavam era nauseabundo e o assombro de Dom António, indescritível. Até onde a vista alcançava não existia rasto de água, todo o chão era de areia ou lama seca e gretada, aqui e ali plantado de arbustos entremeados no capim com mais de um metro de altura. O insólito desta paisagem é que os peixes eram peixes de verdade e estavam empoleirados na vegetação. De entre os acompanhantes, os poucos que conheciam ou eram da região, não compreendiam o assombro dos demais e com naturalidade, respondiam, simplesmente, que os peixinhos eram «tukeia». Havia os que permaneciam em silêncio ou conversavam entre si, mas a maioria, sobretudo os carregadores, que chegavam ao lugar pela primeira vez, manifestavam-se curiosos, também, perante a novidade.

Não havendo explicação lógica e à falta de outros elementos, deduziu D. António que estava perante uma espécie desconhecida de peixes voadores, que se haviam reunido, inexplicavelmente, em tão estranho lugar. E assim nasceu a lenda dos peixes voadores das anharas ou dos peixes do capim.

(Leia a seguir «Tukeya, o Peixe Voador»).


AUXILIAR DE LEITURA:

Anhara  Savana.

Bissapa ou vissapa  Qualquer arbusto silvestre.

Chana  O m.q. anhara. Savana. Lezíria.

Luxazes ou Luchazes  Nome pelo qual se conhecia uma vasta região do leste de Angola.

Tukeya, tukeia ou tuqueia  Peixe lacustre das anharas do leste da Angola.

Um gnu ou boi-cavalo (Foto de autor desconhecido)


TUKEIA, O PEIXE VOADOR

Até onde sei, a lenda dos peixes voadores que vestem de prata as anharas do Moxico foi criada por D. António d’Almeida, o governador-poeta e descobridor de um vasto campo com milhões e milhões de peixinhos empoleirados nas árvores.

Na verdade, as árvores não eram árvores, senão arbustos ou, por outro dizer, bissapas comuns e capim alto, a normal vegetação das chanas do Leste de Angola. Isso sim, o governador não encontrou maneira de explicar nem a sua misteriosa origem, nem o porquê daquele lugar de reunião e de tão insólito e fabuloso amontoamento.

Se não existe o termo, invento agora mesmo: legendificação. A legendificação da «tukeya» deve-se, talvez, a que somente dois homens da caravana do governador conheciam e podiam comentar acerca do mar, do seu aspecto e imensidão, da quantidade de peixe que havia nessas águas profundas, tão salgadas que não se podiam beber. O mar era, para eles, um rio infinito e assustador, cheio de peixes enormes, enfeitiçados, porque nunca tinham sede, jamais bebiam água doce. Tinham visto tudo isso com os próprios olhos, mas estavam convencidos de que o feitiço daquele mato era mais poderoso, porque criava peixes nas bissapas e peixes que tão pouco bebiam água.

Para facilitar a legendificação do assunto, outros integrantes da caravana manifestaram conhecer a «tukeya», mas registavam a sua existência apenas ao nivel de estranha comida dos povos da chana. Contavam-se pelos dedos os que já haviam provado o manjar. Coincidiam em que, apesar do seu cheiro nauseabundo e penetrante, oferecia um prato muito saboroso. Àparte isto e como ninguém tinha pescado, apanhado, ou visto pescar a «tukeya», não havia testemunhas, quem soubesse alguma coisa àcerca da origem dos peixes do areal. Nestas circunstâncias, é fácil imaginar a conversa que se estabeleceu entre Dom António e os acompanhantes e estes entre si, na sua língua de origem, que traduzo, para facilitar a vida aos leitores. A cena e o diálogo que se seguem são imaginários e não foram relatados pelo governador.

Dom António mandou dois escravos que fossem buscar algumas daquelas coisas prateadas que se viam à distância. Entretanto, abandonou a tipoia onde se fazia transportar, estirou as pernas, ergueu o comprido pescoço sobre a vegetação. Quando, por fim, pôde tomar nas mãos os peixinhos que lhe alcançavam, viu que estavam secos, mumificados pelo sol. Procurou entender o fenómeno e interpretar o confuso palavreado dos vassalos. Tarefa impossível mas que, mesmo assim, empreendeu.

DOM ANTÓNIO — Isto é quê?

VOZES — «Tukeia». Responderam-lhe.

D.A. — E «tukeia» é quê?

CARREGADOR — «Tukeia», não vês, é mesmo os peixe!

D.A. — Peixe como? Os peixes ficam em cima das árvores como passarinhos?

UMA VOZ (dirigindo-se aos demais) — Oh pá… Esse gajo tá falar à tôa. Ele atão está só maluco dos cabeça dele, pôssa, pah! É peixe.

CARREGADOR — Não siô! Eu não. Si siô. É mesmo os peixe. Não vês, atão? São mesmo os peixe de comer.

VOZES — Eh, eh, eh... Os peixe sai atão em cima dos pau? Oh! Você viu? «Ombise, o kanjila ko? Aieku, ué!» Os peixe não é os passalinho, não.

Todos opinavam mas ninguém explicava a razão pela qual havia peixinhos pousados nas folhas e a discussão não terminava. A caravana aproximou-se da misteriosa esteira prateada que o sol retocava de reflexos azuis.

«O aroma é pestilento. Só pode andar-se por aqui com o nariz tapado» — anotou D. António no canhenho de viagem. Rodeado de peixinhos e opiniões por todo o lado, queria entender o inintendível e o diálogo generalizado não lhe entregava informação compreensível ou válida. O exame mais atento dos peixinhos tão pouco.

«Que são peixes, são. Está fora de dúvida. Os mais compridos têm entre uma e duas polegadas, são barrigudos, prateados, de olhos minúsculos e barbatanas talvez mais largas e compridas do que o normal para peixes das suas dimensões. Parecem asas».

Desta anotação à teoria dos peixes voadores foi um passo. Para melhor conclusão faltava, apenas, encontrar o rio ou lago de onde partiam os cardumes...

«…Cardumes ou enxames?», interrogava-se o governador. «Nadam ou voam? Que distância? A que altura? Porque razão aterram ou caem todos juntos? Acidente ou suicídio coletivo? Sobre os arbustos veem-se nuvens de peixinhos prateados, ressequidos, tão extremadamente delgados que, em vida, são tão leves que podem deslocar-se pela planície, voando como enxames de gafanhotos, até cairem exaustos sobre as plantas».

Antes de continuar viagem, D. António investigou um pouco mais na região, mas sem descobrir nas proximidades e nem sequer longe dali, nenhum rio, lago ou qualquer lençol de água à vista, nem quem lhe explicasse o fenómeno. Nunca regressou ao lugar e morreu anos mais tarde sem desvendar o mistério ou os feitiços da «tukeia». Contudo a sua fantasia não andava longe da verdade. A «tukeia» brota do chão como as nuvens de gafanhotos.

Este peixe minúsculo nasce na anhara, nos lagos de curta vida que a água das chuvas forma, todos os anos. Nas gretas de lama seca, no fundo, ficaram depositados os ovos que produzem miríades de peixinhos de crescimento alucinantemente rápido. Em dois meses cumpre-se o ciclo vital e começa a desova. A forte evaporação devida à secura do clima e o baixo nível das águas obrigam à concentração dos cardumes, facilitando a tarefa da recolha. As mulheres da região chegam em grupos, empunhando cestos com aspecto de raquetas enormes. Entram na água juntas, formando parede e avançam umas ao lado das outras, repetindo canções e técnicas seculares. Agitam os cestos com movimentos de baixo para cima e atiram os peixes ao ar, para que caiam sobre as plantas. Dias mais tarde, voltam à anhara, desta vez com kindas e juntam a «tukeya», como quem colhe frutos do alto das bissapas.

O cheiro fétido deve-se ao processo de semiputrefacão que ocorre durante a secagem, mas os guisados de «tukeia» são famosos entre ganguelas e kiokos e são realmente saborosos. E sem cheiro. Custou-me a provar, por preconceito, depois aficionei-me e confirmo que são uma delícia. E sem cheiro.

A «tukeia» exporta-se em pequenas malas de mateba, de rede apertada à dimensão do conteúdo e a sua presença nos transportes ou comércios rurais é denunciada à distância pelo cheiro. Cheiro a quê?

— A peixe voador, Alteza, a «tukeia», senhor Dom António. A «tukeia»!


AUXILIAR DE LEITURA:

Anhara — Savana

Bissapa ou vissapa — Qualquer arbusto silvestre.

Chana — O m.q. anhara. Savana. Lezíria.

Kanjila — Forma negativa de onjila, que significa pássaro, passarinho. Portanto, aquilo que não é pássaro.

Kinda — Cesto cónico que as mulheres transportam à cabeça.

Luxazes ou Luchazes — Nome pelo qual se conhecia uma vasta região do Leste de Angola.

Mato — Bosque. Floresta. Região do interior do país. Lugar afastado.

Ombise — Peixe.

Tipoia — Maca. Liteira em que as pessoas importantes ou poderosas viajavam pelo sertão, ao ombro de escravos.

Tukeyatukeia ou tuqueia — Peixe lacustre das anharas do leste de Angola.

Sebastião Coelho, jornalista angolano falecido em 2002 com 71 anos de idade. Excertos do seu livro inédito Manamafuika

22 maio 2016

Ode à Paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
           deixa passar a Vida!

Natália Correia (1923–1993)


Quedas de Calandula, província de Malange, Angola (Foto: Jessé Manuel)

20 maio 2016

Siga a Marinha


Flash mob por elementos da Banda da Armada no Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras, maio de 2016


Flash mob por elementos da Banda da Armada na Rua Augusta, Lisboa, maio de 2015

15 maio 2016

O pote de azeite

PAIO VAZ:

Pois Deus quer que pague e peite,
Tão daninha pegureira,
Em pago d’esta canceira
Toma este pote de azeite,
E vae-o vender á feira;
E quiçaes, medrarás tu,
O que eu comtigo não posso.

MOFINA MENDES:

Vou-me á feira de Trancoso
Logo; nome de Jesu,
E farei dinheiro grosso;
Do que este azeite render
Comprarei ovos de pata,
Que é a cousa mais barata,
Que eu de lá posso trazer.
E estes ovos chocarão;
Cada ovo dará um pato,
E cada pato um tostão,
Que passará de um milhão
E meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada,
Por este ovo de pata,
E o dia que fôr casada
Sahirei ataviada
Com um brial de escarlata;
E diante o desposado
Que me estará namorando,
Virei de dentro bailando
Assi d’esta arte bailado
Esta cantiga cantando.

Estas cousas diz Mofina Mendes com o pote de azeite á cabeça, e andando enlevada no bailo, cae-lhe, e diz

PAIO VAZ:

Agora posso eu dizer
E jurar e apostar
Que és Mofina Mendes toda.

PESSIVAL:

E se ella baila na voda
Qu’está ainda por sonhar,
E os patos por nascer,
E o azeite por vender,
E o noivo por achar.
E a Mofina a bailar;
Que menos podia ser?

Vae-se Mofina Mendes, cantando:

MOFINA MENDES:

Por mais que a dita me engeite
Pastores, não me deis guerra;
Que todo o humano deleite
Como o meu pote de azeite
Hade dar comsigo em terra.

Gil Vicente (1465–1536?), in Auto de Mofina Mendes


07 maio 2016

Selva viva


Kawsak Sacha (Selva Viva), um vídeo sobre a floresta e o povo Kichwa que a habita em Sarayaku, na região amazónica da República do Equador


A floresta está cheia de seres vivos e das relações de comunicação que estes seres mantêm uns com os outros; o mundo natural é também um mundo social. A floresta não se limita a proporcionar um espaço para todos os seus habitantes viverem, quer estes pertençam ao reino vegetal, quer pertençam ao reino animal, incluindo os seres humanos. Também lhes fornece energia e equilíbrio emocional, psicológico, físico e espiritual. A floresta não é um mero elemento paisagístico nem um simples recurso natural; é uma expressão da própria vida.

01 maio 2016

Maio

Maio, iluminura do livro Les Très Riches Heures du Duc de Berry