25 julho 2017

A rainha virtuosa e as duas irmãs

Primavera, desenho de Laura Costa (1910–1992) restaurado digitalmente por Jorge Silva


Um rei mancebo, que não tinha conversação de mulher alguma, requerido dos seus que se casasse, com desejo de achar na sua propria terra mulher para isso, refusava o casamento de muitas princezas forasteiras que lhe traziam. E queria que a mulher fosse de virtuosos costumes, claro sangue e boa vida, sem respeito a fazenda, pelo que por dote queria que tivesse estas tres cousas. E andando com esta imaginação passeando um dia per uma rua, sahiram certas mulheres moças todas fermosas a uma janella, e quando elrey passou ficavam fallando umas com outras, que elrey as ouviu, e não entendeu o que diziam, e por saber o que era chamou a si fidalgos que estiveram mais perto. Foi-lhe respondido:

— Senhor, uma disse, que se ella casasse com vossa alteza, se estrevia a fazer de suas mãos lavores de ouro e seda, tão ricos e tanto em vosso serviço, que se se avaliassem valessem tanto dinheiro que bastasse para gasto da mesa. E a outra respondeu que aquillo era muito, mas que se ella tivesse tal dita que casasse com elle, lhe faria camisas e outras cousas de que tivesse necessidade. E a outra respondeu: Ambas não sabeis o que dizeis, nem val todo vosso lavor tão estimado tanto que baste para vossa mantença; eu vos digo o que farei: Se chegasse a estado de casar eu com elrey, de seu ajuntamento lhe pariria dois filhos fermosos como o ouro e uma filha mais fermosa que a prata, o qual é prometter que as mulheres podem cumprir.

Elrey folgou de o ouvir, e notando as considerações em que ellas estavam propoz de casar com uma d'ellas. Visto isto mandou chamar mulheres de titulo, donas e senhoras, a quem deu conta, diante das quaes quiz fallar com estas donzellas para se determinar qual tomaria por mulher. E logo fez vir ante si a mais velha, que vista foi julgada por muito fermosa; elrey lhe preguntou:

— O que promettestes fazer estando á vossa janella se eu casasse comvosco, estrevei-vos a cumpril-o?

Ella se envergonhou, e mudada a côr disse:

— Farei em seu serviço tudo o que minhas forças bastarão.

Elrey a fez recolher e vir a segunda; porém nas perguntas aconteceu assi como á primeira, pelo que elrey a fez recolher e vir a menor, que claramente mostrou ser ella a mais fermosa de todas. Elrey lhe perguntou se se estrevia a cumprir o que promettera, e ella muito envergonhada respondeu:

— Senhor, si; com as condições que então disse.

Coube isto em tanta graça a elrey, que elle a recebeu por mulher e se fizeram grandes festas que duraram muito. E elrey trouxe para casa da rainha as duas irmãs que a acompanhassem, e ellas foram servidas e tratadas como irmãs da rainha sua mulher. Elrey fez vida mui amorosa com sua mulher, porém durou pouco tempo, porque com inveja que tinham do estado da rainha ambas de um conselho lhe buscavam todo o damno e como a poder empecer e tirar da alteza e honra em que estava. De sua industria, com falsas testemunhas n'aquelle parto e em outros dois adiante, pubricaram com falsidade que a Rainha parira monstros peçonhentos e não criatura, e os fizeram ventes aos que tinham razão de os vêr, de que o reino todo se alterou, e elrey aborreceu tanto a sua mulher, que lançando-a fóra de casa não lhe permittiu em todo o reino logar nenhum em que tivesse repouso, e as irmãs lhe buscavam tanto mal, que o faziam a quem a recolhia; de modo que a rainha veiu a ser a mais pobre e abatida mulher de serviço que em seu tempo houve na terra, porém permanecendo em toda limpeza se fingiu forasteira e por mulher de serviço a recolheram em um mosteiro de freiras. As irmãs procuravam illicitamente de vêr se podiam agradar a elrey, o qual dissimulando e apartando-se da conversação d'ellas fazia que as não entendia, e quando se achava só dizia mal da fortuna que lhe apartava da sua presença a coisa do mundo que elle mais amava, e para recreação do desgosto que trazia comsigo não tinha outra consolação senão ir muitas vezes em um barco pelo mar ao longo da terra por esparecer. Algumas vezes pescava e outras ia á caça ao longo de algumas ribeiras. E costumando isto, aconteceu que um dia indo ao longo de uma ribeira acima, viu á borda de agua uma casa feita de novo. E chegando perto, desejando saber cuja era, viu a uma janella um menino que seria de sete annos, de muito fermoso rosto, pobremente vestido, perguntou-lhe:

— Filho, quem móra n'esta casa?

E o menino como muito criança, disse:

— Senhor, mora meu pae, que não está aqui; se vossa mercê quer que chame minha mãe, virá logo.

E n'este tempo outro menino de menos edade dizia dentro:

— Senhora mãe, senhora mãe, aqui está um fidalgo á nossa porta.

E a esta conjuncção sahiu uma mulher á porta da rua com uma menina pela mão, pequenina, e disse:

— Senhor, que manda vossa mercê?

Elrey, que tinha pregados os olhos e o coração nos meninos que via, tendo no sentido que os filhos da rainha sua mulher já houveram de ser d'aquelle tamanho, lhe disse:

— Vejo estas casas novas ao longo d'esta ribeira, e estes meninos tão fermosos, folgaria de saber cujo isto é?

Ella respondeu:

— Senhor, as casas e os meninos são meus e de meu marido.

— Dona, as casas creio que serão; mas os meninos, sois já de dias, que parece não deveis de ter tão pequenos filhos. Dona honrada, sou Elrey, e quero saber cujas são estas casas e estes meninos.

Ella se humilhou muito e com os giolhos no chão, que ao que perguntava soubesse, que as casas eram suas, mas que os meninos ella não sabia cujos filhos eram mais que trazer-lh'os seu marido, que aquella manhã fôra ao mar e viria á noite. Então disse Elrey:

— Pois dizei-lhe que amanhã ao jantar vá ter commigo ao paço, e leve estas crianças para me dizer o que sabe d'ellas, que o hei-de esperar sobre mesa.

E ella assi lh'o prometteu. Ido elrey, como se metteu ao longo da ribeira, já ia acompanhado de muitos dos seus e iam buscando se descobririam alguma caça; sua alteza viu umas lapas que parecia que outro tempo foram pedreira e de dentro sahiu uma mulher, que trazia os cabellos muito grandes, soltos e pretos, e os vestidos muito rotos. E assi como ella sahiu viu a elrey e com muita diligencia se tornou a metter para dentro para se esconder; mas como foi vista, elrey a seguiu e asinha a alcançou:

— Quem sois? e porque estaes n'este ermo?

Ella que conheceu mui bem que era elrey o que lhe fallava, lhe disse:

— Para que quer saber vossa alteza a vida de uma mulher desventurada, que em penitencia de seus peccados a faz d'esta maneira, que agora vê?

Elrey, que viu que era conhecido d'ella, e que por muito que lhe rogou não quiz dizer quem era, desejoso de o saber a fez tomar por dois homens, lhe mandou dar um a capa de agua sua, e um sombreiro, que se cobrisse e a puzessem em ancas de uma mula, e que um escudeiro com muito resguardo a levasse ao paço, e sem que fosse vista de outra pessoa alguma a tivesse até que elle chegasse, o qual se fez assi. Ao outro dia, chegadas as horas de recolher á mesa, trouxeram aquella mulher por mandado de elrey, que de novo lhe perguntou quem era e porque andava d'aquella sorte; e ella cheia de lagrimas e soluços disse:

— Estando eu n'esta casa em muito viço, favorecida da rainha e de suas irmãs, ellas me apartaram um dia, e me disseram que sua alteza estava de parto, quando a primeira vez pariu, e que ellas tinham determinado lançar um grande sapo com as páreas quando deliberasse, para dizer que aquillo parira a rainha, e que eu com diligencia tomasse a criança, que ellas m'a dariam envolta em panos, que fosse lançar no mar, e que isto faziam, porque não acertasse de parir filhos como o promettera. Tomei a criança acabada de nacer, que era um filho, e logo em minha presença tiraram um grande sapo que tinham em uma panella, e o embrulharam com as páreas; e isto feito gritaram fingindo que isto era medo do sapo e lançaram a fugir e juntamente com ellas a parteira. E com esta revolta tive tempo para me sahir do paço levando a criança commigo, e quando me vi na rua encaminhei para o mar, e fui ter junto áquelle logar donde vossa alteza me achou; desembrulhei a criança, vi que era varão, e n'isto vi vir um velho pescador; deixei a criança embrulhada nos fatos como vinha e lancei a correr fugindo. Elle como me viu deixar aquelle vulto, foi vêr o que era, e como lh'o vi erguer do chão e leval-o para sua casa, tornei-me ao paço com o rosto ledo, e disse ás senhoras que o lançára no mar. Foram contentes do que eu disse que fizera, e d'esta maneira aconteceu outra vez no segundo parto, quando disseram que a Rainha parira uma cobra; fugindo todas, fugi eu tambem e levei o infante ao proprio logar donde levára o outro. Antes de outro anno, ou n'elle, a rainha veiu a parir outra vez; chegada a hora me deram outra criança, e fingiram como d'antes aver a rainha parido uma toupeira, que tinham para isto prestes; e no espanto e alvoroço d'isto, quando fugiram fugi eu e fui ter á borda da agua no logar donde deixei seus irmãos, e vi que levava uma menina. Esmoreci, e quando acordei achei o pescador commigo, e me dizia:

— Descoberta ha-de ser esta cousa a elrey.

E porque me temi que me buscasse no paço não quiz tornar a elle, e metti-me n'aquellas lapas, em que averá bem quatro annos que estou.

Elrey acabando de ouvir isto, ficou espantado das treições que as irmãs fizeram contra sua irmã, as quaes ambas foram chamadas e viram a donzella e entenderam tudo o que ella tinha dito, e como tudo era verdade não tiveram bocca com que o negar, e como que queriam faltar uma com a outra se chegaram a uma janella d'aquella sala que ia ter ao mar, e abraçando-se ambas se lançaram em baixo com tanta presteza que se lhe não pôde estorvar. Ainda a gente do paço não estava de todo socegada d'este alvoroço quando entrou pela porta o velho pescador e sua mulher; traziam no collo dois Infantes e a Infanta. E chegando ante elrey o velho se adiantou de sua companhia, e disse alto que todos o ouviram:

— Disseram que hontem passára vossa alteza pela porta da casa em que vivo, e vendo estes meninos perguntou cujos filhos eram, e porque minha mulher lhe não deu razão sufficiente, vossa alteza mandou que viesse eu aqui e os trouxesse, que queria saber cujos filhos eram tam fermosos meninos; pelo que vim e os trago commigo.

Ouvindo isto, e visto o que a donzella dissera todos os circumstantes a uma voz diziam que todos aquelles trez eram filhos delrey; e as donas todas da casa viram e conheceram todo o fato em que os infantes foram envoltos. Logo elrey mandou por todo o reino em busca da rainha, e que se publicassem as novas do achamento dos trez filhos infantes, e da treiçam das irmãs da rainha e sua morte. E foi ter esta nova ao Mosteiro onde a rainha estava; todos viam n'ella mais alegria, que em nenhuma outra pessoa, e foi tanta que suspeitaram o que era, e a Rainha vendo que já não era tempo de se encobrir, lhes manifestou e declarou a verdade.

Elrey mandou chamar toda a fidalguia da côrte e muitos senhores, que trouxessem suas mulheres, e com todos elles e ellas em grande festa levou a Rainha d'alli para o paço com tanto alvoroço de alegria como se então se casaram de novo.

Gonçalo Fernandes Trancoso (1520–1596), Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575), Parte II, conto VII

Comentários: 0

Enviar um comentário